Carta aberta para a mitigação dos incêndios em Portugal.
Há cerca de uma semana enviei este texto para um importante órgão de comunicação social de Portugal a pedir que fosse publicado. Alguma presunção? Talvez. Mas em tempos tinha publicado uma abordagem semelhante e os anos e os fogos, entretanto decorridos, deram-me razão. Não vou esperar mais e vou postar de imediato. O problema é sério. É. É difícil de resolver. É. Tem-se feito o correto ou o melhor possível? Não sei!
O nosso país é essencialmente um país florestal em virtude do relevo, do clima e da natureza dos solos. Erradamente, durante muitos anos, entendemo-lo como agrícola. E ainda persistimos, em muitas zonas, no mesmo erro. Contudo, apesar de sermos um país essencialmente de cariz florestal, na realidade a nossa cultura florestal (entre outras…) não é muito elevada, o respeito pela floresta é ténue ou mesmo inexistente. A floresta é uma riqueza, provavelmente uma das maiores que o nosso país tem – ou, pelo menos, teve até há alguns anos a esta parte já que essa riqueza se vem convertendo em cinzas ano após ano, verão após verão. E, cada vez mais, no outono e na primavera.
A última quebra registada ao nível da nossa cultura florestal terá ocorrido com a nossa plena integração na então denominada CEE. A Comunidade nunca entendeu a estrutura rural do nosso espaço agrícola e florestal e a política que levou a cabo ajudou a destruir a ruralidade do nosso espaço agrícola, produzindo danos ao nível do tecido social, arrasando, em consequência, com muitas boas práticas que tinham lugar, entre elas, a limpeza das matas já que a população se encontrava fixa e atuante.
Uma certeza que parece de todos embora o “modus operandi” nunca nela se baseie, é que no prevenir é que estará a parte maior da solução. Contudo, ou por ser propositado, ou pela excessiva alternância de governações e direções com o hábito de começar por negar tudo o que foi anteriormente projetado e implementado, resulta que, na prática, muito pouco se vai fazendo apesar de se irem gastando verbas avultadas.
Há vários fatores apontados como causas para esta catástrofe que, especialmente nos anos mais recentes, têm sido apontadas.
Crimes praticados por pirómanos ou por interesses económicos, de cariz imobiliário, interesses madeireiros, ou, pasme-se, da indústria do “apagar incêndios”.
As alterações climatéricas parecem, cada vez mais, propiciar as condições de maior risco, proporcionando, em simultâneo, temperaturas muito elevadas, humidades relativas muito baixas e ventos fortes.
Também o factor humano tem, indiscutivelmente, responsabilidades a vários níveis: por um lado, a falta de cultura cívica que nos leva a, mesmo que involuntariamente, accionar incêndios, seja por uma beata acesa, seja por uma garrafa negligentemente deixada numa mata; por outro, a organização do tecido social no meio rural e respectivo tipo de actividade – com o êxodo crescente das populações rurais e envelhecimento acelerado dos que por lá vão ficando que, consequentemente, cada vez mais vão deixar de amanhar as suas terras. Criam-se, assim, condições favoráveis aos fogos florestais.
Relativamente às alterações climáticas, de que tanto se fala, tudo aponta para que os Verões sejam cada vez mais quentes e secos e os Invernos com chuvas concentradas em períodos curtos, ou seja, a apelar para a necessidade de um Serviço de Protecção Civil reforçado não só para o Verão como também para o Inverno. Florestas devastadas pelos incêndios juntamente com chuvas torrenciais produzem uma mistura explosiva que acabará, de vez, com a camada arável das nossas florestas e poderá conduzir, a prazo, os actuais montes florestados e verdejantes a montes de pedra onde imperará a aridez.Como (para mim) a paisagem vitícola é algo que me fascina e de que necessito para o meu equilíbrio, agrada-me pensar que esta paisagem poderá ainda ser parte da chave da solução na luta aos incêndios. Um pouco à maneira da linguagem florestal, chamemos-lhe “o uso múltiplo da Vinha”. Há muitos anos li um artigo, creio que na revista francesa “Progrés agricole et viticole”, um artigo sobre as “vinhas corta-fogo”. Uma abordagem muito interessante pela capacidade de as vinhas não permitirem o avanço dos fogos florestais. Até dada altura não achei mais que uma “abordagem interessante”. Contudo, penso que em 2005, um incêndio que devorou com grande avidez a Serra da Arrábida, demonstrou-me o quão pertinente e útil poderá ser esta evidência para a floresta portuguesa. Ardia então a floresta com grande intensidade de poente para nascente. Passando a zona do alambre e a estrada municipal, o fogo atingiria uma progressão difícil de travar. Não fosse a vinha dos Pasmados na Quinta da Serra e tal teria acontecido. De facto, foi bem evidente a capacidade para a vinha deter ou pelo menos retardar significativamente o fogo e permitir a ação dos bombeiros. Provavelmente, foi esta vinha que evitou males maiores para a serra no ano de 2005. Lembrei-me então e não mais esqueci do tal artigo que referi.
Na altura escrevia, com alguma frequência na mais importante revista do setor vitivinícola. Assim, quando no dia seguinte ao incêndio fui, serra adentro, observar e avaliar os danos provocados na serra e na Vinha dos Pasmados, confesso que senti alguns remorsos por ainda não ter escrito o artigo que viria a escrever no outono seguinte, na referida revista. O artigo que há muito deambulava entre os meus dedos e cérebro, mas tardava em adquirir a melhor forma. Perdoem-me a presunção, mas, na altura, cheguei a pensar que o seu conteúdo pudesse poupar alguns hectares de floresta. Depois, racionalizei, e recordei as dezenas de artigos que li, com ideias válidas, projetos bem estruturados, um conjunto de intenções, livros brancos, que nem um hectare salvaram. Com efeito, este incêndio que se pautou em mais de 200 hectares ardidos, só não teve efeitos mais catastróficos, ou seja, toda a serra ficar em cinzas, graças à ação notabilíssima do corpo de bombeiros e da presença da vinha. Com efeito, a vinha dos Pasmados, serviu de corta-fogo facilitando o combate às chamas e impediu que o fogo seguisse para zonas inacessíveis aos meios terrestres o que, provavelmente, teria ditado uma catástrofe muito maior. Hectares ardidos mais adiante, o fogo acabou por ser definitivamente controlado aos pés da vinha que se seguiu, já em Picheleiros.
A vinha fixa as gentes à terra – necessita de muita mão-de-obra durante todo o ano, ou pelo menos de trator-de-obra, o que, de alguma forma, para além de prestar vigilância e sensação de “não abandono”, obriga a uma manutenção das zonas circundantes e limítrofes, bem como aos caminhos limpos que prestam uma acessibilidade a meios de prevenção e combate. Esta presença humana inerente, para além de ser dissuasora de eventuais incendiários, potencia por si só uma série de situações conducentes ao “não fogo” – matas mais limpas, caminhos limpos e transitáveis.
Cerca de 11 anos volvidos, Luís Lopes, então Diretor da referida revista, contactou-me por ter, ele próprio, constatado, o mesmo efeito, em 2016, na zona da Bairrada. Escreveu então um editorial em que revisitava o artigo por mim escrito há cerca de 11 anos. A foto desta carta aberta é do Luís Lopes que, amavelmente, me cedeu.
“Agora que o calor se instalou, não tardarão as parangonas e os diretos nas televisões dando conta dos milhares de hectares de floresta que ardem sem piedade.” – tinha eu escrito na carta que enviei há uma semana. Lamentável e desgraçadamente, há data de hoje, contamos com mais de 6 dezenas de portugueses mortos e uma área de floresta ardida que perde expressão à luz da tragédia humana.
Gostaria de reafirmar a minha firma convicção que as vinhas corta-fogo poderiam, efetivamente, ser um auxiliar meio na proteção da floresta portuguesa. Estes anos volvidos, para além de ter reforçado a minha convicção, acrescento algumas reflexões que acredito que poderiam acrescentar valor ao projeto.
Reflexões:
– Portugal tem potencial para produzir vinhos de qualidade praticamente em todas as regiões do país;
– Existem adegas distribuídas por todas as regiões do país;
– A rega aumenta o potencial de produção de uva e aumenta a viabilidade económica das vinhas; pode também, se for bem monitorizada e aplicada, potenciar a qualidade dos vinhos;
– A vinha é geradora de emprego e cria oportunidades no meio rural;
– A vinha não constitui uma barreira à biodiversidade;
– Em muitas zonas agrícolas e florestais, a água não está acessível o que poderá ser um constrangimento ao combate dos incêndios;
– Haverão verbas comunitárias disponíveis à implementação de medidas ao combate de incêndios;
Conjunto de medidas propostas:
- Criação em “gabinete” duma rede de vinhas corta-fogo nacional de acordo com a orografia das regiões e o grau de risco de incêndios;
- Projeto de incentivo para instalação das vinhas (fundos; financiamento…);
- Determinação do sistema de condução das vinhas por forma a potenciar o máximo de mecanização, nomeadamente, a vindima mecânica;
- Determinação das castas a utilizar, com a obrigatoriedade ou incentivo à utilização duma casta autóctone e em vias de extinção, mesmo que numa quantidade reduzida (5-10%), em parceria com a PORVID que gere a coleção de germoplasma da vinha em termos nacionais. Assim, a rede teria um duplo efeito com um grande interesse para a fileira viti-vinícola
- Estabelecimento do “modus operandi” para instalação das vinhas;
- Predefinição da rede de adegas parceiras;
- Criação de uma rede de condutas de água, com a finalidade mista de regar as vinhas corta-fogo e com bocas de incêndio que permitiram a rápida utilização por parte de bombeiros ou a aspersão por via automática ou por ordem à distância, coordenada pela Proteção Civil – esta medida poderia representar uma grande mais valia que anteciparia a capacidade de reação antes dos bombeiros chegarem ao teatro de operações e, depois de chegarem, facilitaria muito a sua ação pela disponibilização de água in “loco” sem necessitarem de fazer reabastecimentos a longas distâncias.
- Criação duma marca “umbrela” para as diferentes regiões, que potenciasse a sua notoriedade, viabilidade económica e sensibilização pela importância da floresta nacional em toda a comunidade.
Acredito veementemente que uma ação concertada deste tipo, entre a fileira florestal e vitivinícola, que representa o setor agrícola mais importante, com um forte contributo e empenho das autoridades nacionais, poderia ajudar a reverter este flagelo que, ano após ano, é responsável pela perda de vidas humanas, por prejuízos diretos incalculáveis, e por pela delapidação do nosso património florestal e paisagístico.
Opinião escrita por João Vila Maior, CCO IBERIA da Probelte (publicado em 19 de junho de 2017)