Glifosato na Bio-região de Idanha-a-Nova – Câmara analisa água da rede e de furo para desmentir contaminação detectada em águas superficiais.
Carta aberta ao Presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova
De: PTF – Transgénicos Fora – Plataforma para uma agricultura sustentável
Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, Eng.º Armindo Jacinto Face ao comunicado em que afirma que as análises que encomendou ao laboratório Centro Tecnológico das Indústrias do Couro (CTIC) “desmentem totalmente o estudo divulgado em setembro último pela Plataforma Transgénicos Fora”, garantindo que “não há concentração de glifosato em Idanha”, a PTF reage agora, após ter reunido informação ao longo de meses, de posse de fundamentação científica sólida e análise objectiva da situação.
Em 6 de Setembro de 2023, a PTF divulgou os resultados de um estudo europeu realizado pela ONGA PAN-Europe (Pesticides Action Network – Europe) em colaboração com o Grupo dos Verdes do Parlamento Europeu, relativo à poluição das águas superficiais na União Europeia com o herbicida glifosato e o seu metabolito de degradação, o ácido aminometilfosfónico (AMPA) (1). Ambas as moléculas são tóxicas não só para as ervas, mas também para muitos outros seres vivos, incluindo o ser humano, e consideradas “provavelmente cancerígenas” para humanos pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Nesse estudo a amostra recolhida em Idanha-a-Nova, numa linha de água da Herdade da Fonte Insonsa, junto de amendoais em agricultura convencional, apresentou um teor de glifosato de 3 microgramas por litro de água, valor 30 vezes superior ao limite máximo legal para água de consumo humano (0,1 microgramas por litro). Nalguns dos restantes países abrangidos pelo estudo também surgiram valores próximos deste, embora inferiores.
A contaminação por glifosato/AMPA é conhecida nalguns países há pelo menos 20 anos, como é o caso de França (2).Mas noutros, como em Portugal, é ignorado, pouco avaliado e praticamente nada divulgado. Na sequência do estudo feito pelo Institut Français de l’Environnement (IFEN) nas águas superficiais de todo o país (2) , com o objetivo de reduzir a poluição da água com glifosato e AMPA, o governo francês estabeleceu um limite máximo anual para o glifosato em vinhas no valor de 2.160 gramas/ ha. Essa dose máxima anual, de substância activa por hectare, corresponde a um ou dois tratamentos por ano, dependendo da área tratada.
Mas por cá os responsáveis políticos e as autoridades nacionais da agricultura, do ambiente e da saúde continuam a ignorar o problema. Um estudo científico de 2018, feito em solos agrícolas de 12 países europeus (3) , revelou resíduos de glifosato e AMPA em cerca de 50% desses solos, tendo Portugal a amostra com o teor mais alto de glifosato (2 mg/Kg – 2 miligramas por quilograma de solo). Num outro estudo de 2020, realizado apenas no nosso país, detectou-se que a maioria dos portugueses analisados (perto de uma centena) apresentavam elevados valores de glifosato na urina, mesmo os que não tinham qualquer contacto directo com este produto em contexto de trabalho (4) .
Se em Idanha há quem faça quatro tratamentos de glifosato por ano em amendoal convencional, tendo em conta que: i) este herbicida tem uma meia-vida no solo de 1 a 2 meses (tempo para que 50% do glifosato aplicado se degrade no solo), ii) tem alta solubilidade em água e iii) contém um metabolito de degradação também tóxico, estranho seria não encontrar estas duas moléculas, em concentração elevada, nas águas superficiais do concelho. O estudo da PAN Europe visava chamar a atenção para a contaminação das águas superficiais e reforçar a oposição à renovação da licença de utilização do glifosato que, na altura, a Comissão Europeia estava prestes autorizar. O estudo foi divulgado a nível europeu em colaboração com outras organizações de ambiente e, em Portugal, essa tarefa coube à PTF.
A PTF considera que o “desmentido” feito por V. Exa. carece de rigor científico, pois, para que os dados sejam comparáveis, a água analisada pelo CTIC deveria ter sido “água superficial”, tendo assim a mesma origem da do estudo europeu, e não “água de abastecimento público e de captação subterrânea (furo)”, como afirmou no comunicado de imprensa. Mesmo tendo a autarquia analisado a água superficial, como lhe competia, sem detectar qualquer contaminação, este desmentido continuaria sem validade pois uma análise pontual é insuficiente para contradizer uma anterior. Só a monitorização, prometida mas não concretizada por V. Exa., poderia dar suporte aquela conclusão.
As amostras recolhidas em fontes e furos resultam de águas subterrâneas (do aquífero), reservas menos expostas à contaminação por glifosato. As amostras recolhidas da rede pública provêm, tanto quanto sabemos, da barragem Marechal Carmona, cuja bacia hidrográfica se enquadra numa zona de agricultura sobretudo extensiva, de olival tradicional e de pastagem, sem a aplicação de glifosato. Seria pois expectável que as análises do CTIC não encontrassem contaminação por glifosato.
Por outro lado, as amostras recolhidas no leito das ribeiras e nas linhas de água resultam em grande parte de águas de escorrências superficiais, que são as mais contaminadas pelos herbicidas. Foi por isso que a PAN seleccionou estas águas (as superficiais e não as subterrâneas) para estudo e é por isso expectável, e normal, que a análise detectasse contaminação por glifosato e AMPA. A linha de água na Fonte Insonsa foi escolhida para amostragem pela facilidade da recolha e por ter um amendoal intensivo.
Portanto, ao contrário do que V. Exa declarou publicamente na Assembleia Municipal de Idanha-a-Nova (AM), em 18 de Dezembro de 2023, e está registado no final da única acta publicada no site do concelho, não há qualquer relação entre a divulgação destes resultados e a intenção, que sugeriu maliciosamente, de “denegrir” Idanha-a-Nova ou qualquer outra região ou país abrangido. A PTF só soube da candidatura de Idanha ao prémio de melhor bio-região europeia e que a sua mulher detém a marca “Fonte Insonsa”, e fabrica queijo biológico nas instalações desta herdade, através das suas próprias declarações, na AM. Ou será que, tendo a PTF essa informação, deveria ter omitido os resultados obtidos pela PAN, para proteger o bom nome de Idanha e da marca “Fonte Insonsa”, escondendo-os da opinião pública? É essa a sua postura enquanto autarca que teve a lucidez política de criar a primeira Bio-Região e se apresenta publicamente como ambientalista?
Tendo em conta o desmentido público e a sua intervenção na AM parece-nos haver uma intenção de denegrir a seriedade do trabalho da PTF. Será esta uma forma de distrair a opinião pública do que realmente se passa no concelho? É que a premiada bio-região europeia está a tornar-se o paraíso agrícola dos activos financeiros, modelo incompatível com o das Bio-regiões, a não ser que os amendoais intensivos de regadio já sejam considerados sustentáveis.
A PAN Europe publicou o relatório do estudo, que pode ser consultado e questionado, e V. Exa. considera-o de “ qualidade duvidosa” , sem apresentar qualquer justificação. Da nossa parte, esperávamos encontrar rigor na reação pública da autarquia, e por isso o felicitámos no início, mas a nossa expectativa foi defraudada. O comunicado inicial (4 de Dezembro de 2023) indicando um resultado laboratorial inferior ao limite quantificável de 0,03 mg/l (miligramas por litro), foi corrigido no dia seguinte para um valor mil vezes menor (correcção omissa no site da CMI); contesta a contaminação detectada em águas superficiais com resultados obtidos em água de outras proveniências, comparando o que não é comparável; afirma que trabalhou com um laboratório acreditado, mas a confirmação é omissa no site do CTIC; e, por fim, declarou ter encomendado “um estudo independente e credível com a monitorização de indicadores ambientais na biorregião” mas a contratualização não se efectivou, até agora. Ao contrário do que é devido, tudo isto indica vontade de camuflar este grave problema e falta de empenho em resolvê-lo.
A bem do ambiente, da biodiversidade, da produção biológica local, da saúde pública e da idoneidade da Bio-Região, apelamos, cordialmente, a V. Exa no sentido de:
1) Publicar o boletim de análise do CTIC no site da autarquia, para que não fiquem dúvidas quanto aos verdadeiros resultados, assim como a prova da acreditação do CTIC para análise ao glifosato;
2) Contratualizar a monitorização dos indicadores ambientais do concelho, incluindo as águas superficiais, através de um estudo independente, como anunciado há um ano.
Só um estudo rigoroso e prolongado no tempo pode determinar o nível de contaminação ligado ao aumento crescente da área de amendoal intensivo, propiciando assim as decisões políticas adequadas.
Saudações cidadãs e ambientalistas, Graça Passos, Jorge Ferreira e Lanka Horstink
23 de Setembro de 2024
Referências bibliográficas:
(1) Simon, G. 2023. Glyphosate is polluting our waters – All across Europe. PAN Europe’s Water Report, Brussels, 38 pp.
(2) Nirascou F., 2006. Les pesticides dans les eaux, Donnés 2003 et 2004. Les Dossiers IFEN, Institut français de l’environnement, nº 5, 38 p.). Em
França o IFEN publicou em 2006 um estudo sobre a contaminação das águas superficiais em todo o país ao longo de dois anos e o glifosato foi encontrado
em 33% e 35% das amostras em 2003 e 2004 respetivamente, e o AMPA em 59% e 55% em 2003 e 2004, respetivamente.
(3) Silva V. et al, 2018. Distribution of glyphosate and aminomethylphosphonic acid (AMPA) in agriculture topsoil in the European Union. Science of
the Total Environment 621 (2018) 1352-1359
(4) Nova P. et al, 2020. Glyphosate in Portuguese Adults – A Pilot Study. Environmental Toxicology and Pharmacology 80 (2020) 103462
Ainda sobre o glifosato, a PTF relembra que:
– Em 2015, o glifosato foi apontado pela International Agency of Research on Cancer (IARC), a agência da Organização Mundial de Saúde que define, com base científica, o potencial carcinogénico das substâncias que podem atingir animais e seres humanos, como cancerígeno para animais e “provavelmente cancerígeno” para seres humanos (1).
– Mais recentemente, em 2021, o Instituto francês INSERM – equivalente ao Instituto Dr. Ricardo Jorge -, publicou um relatório sobre a toxicidade do glifosato, principalmente ao nível das doenças crónicas em que os estudos epidemiológicos em seres humanos e os ensaios toxicológicos conduzidos em animais com este herbicida já demonstraram, com base científica, a relação causa-efeito, e são muitas e graves essas doenças (2). Razão tinha o Dr. José Manuel Silva que, quando era bastonário da Ordem dos Médicos, escreveu que o glifosato era um problema de saúde pública em Portugal (3).
– Existe, ainda, um provável incumprimento da Lei nº 26/2013, aplicável a toda a agricultura em Portugal, desde a convencional mais intensiva até à biológica, que diz que na proteção fitossanitária das culturas agrícolas (incluindo o controlo de ervas infestantes), a luta química deve ser complementar aos restantes meios (mecânicos, biológicos, etc.). Sabemos que existem já equipamentos interfilares de monda mecânica para a linha das árvores que podem substituir a monda química, tal como a cobertura do solo com biomassa vegetal triturada ou telas plásticas . A aplicação de herbicidas é a prática mais fácil, mas não é a melhor prática nem devia ser feita quando outras práticas agrícolas funcionam.
Notas:
(1) International Agency of Research on Cancer, 2015. Carcinogenicity of tetrachlorvinphos, parathion, malathion, diazinon, and glyphosate. Lancet Oncol, Published online Mach 20, 2015.
(2) INSERM, 2021. Glyphosate and glyphosate-based herbicides. Extract from “Pesticides and health effects: New data”. Collection collective, 96 pp. O relatório do INSERM, publicado em 2021, inclui doenças crónicas com possível causa na exposição ao glifosato com base em estudos epidemiológicos em seres humanos (linfoma de não-Hodgkin, autismo, deficiências nos bebés), e com base em estudos toxicológicos em animais ou em células humanas (cancros, genotoxicidade para o DNA, toxicidade para células humanas, toxicidade para mitocôndrias, desregulação hormonal, efeito epigenético entre diferentes gerações, efeitos neurotóxicos, toxicidade para bactérias do microbioma intestinal em frangos, bovinos e abelhas).
(3) Silva J.M. 2015. Os novos estatutos da Ordem dos médicos e o glifosato. Revista da Ordem dos médicos nº 161 (2015) 5-7