O que terá a estória de David e Golias a ver com a agricultura europeia e em particular com a produção de cereais? Às vezes parece que só a fé nos pode salvar, a não ser que a Europa esteja disposta a dar aos agricultores as cinco pedras com que o pequeno David venceu o grande Golias.
O milho é o cereal mais semeado e produzido em Portugal. Só por esta razão não vale a pena relevar a sua importância. Contudo, a área semeada com este cereal tem sofrido, nos últimos anos, uma estagnação e, em algumas zonas, até uma redução relevante. Caso paradigmático desta realidade é a zona de Alqueva. Quando se pensava que a disponibilidade de água, associada às boas condições edafoclimáticas naquela zona do Alentejo, iria promover um acréscimo da produção deste cereal, tal não veio a acontecer, em grande medida devido à concorrência de outras culturas, à cabeça o olival, não sendo igualmente despicienda a influência das opções que têm sido seguidas em matéria de política da água para a agricultura.

A produção de uma qualquer cultura é, no limite, uma decisão económica do agricultor. Várias questões a moldam, desde o seu parque de máquinas, o know-how e nível de especialização, a disponibilidade de água, o apoio técnico disponível, as estruturas de secagem e de comercialização, a capacidade financeira, enfim um sem número de razões, que no final do dia determinam a decisão do empresário. Mas, há uma que acaba sempre por ser a preponderante, o preço de venda e a respetiva margem.
Temos em Portugal zonas de excelência na produção de milho, muito por via de alguns agricultores de referência. A própria associação do sector, a Anpromis, tem feito um trabalho muito meritório na valorização da fileira do milho. Temos produções por hectare que são referência mundial. Perante este quadro, seria de esperar que esta cultura pudesse apresentar uma maior vitalidade, mas não, o preço não deixa. Não é caso único no mundo dos cereais. Será esta situação grave para os consumidores? Não! Nas fábricas, nas padarias e nas prateleiras do supermercado não falta produto. Não havendo nos campos, importa-se. É assim no milho como em outros sectores de atividade.
A Europa é o maior importador de milho no mundo, sendo atualmente a China o seu principal fornecedor. Outras zonas são igualmente importantes, as Américas e, ultimamente, de novo, a Ucrânia, que parece querer regressar a alguma normalidade. Olhando para as condições de produção destes países exportadores, vemos que alguns dos fatores que conferem vantagem competitiva na produção não existem estruturalmente e/ou não são permitidos na Europa. A dimensão, e o respetivo efeito de escala, são-nos desfavoráveis. Em muitas dessas regiões a água e a energia são manifestamente um não assunto. E poderia continuar com a mão de obra e outros fatores de produção. fA grande vantagem verdadeiramente competitiva da Europa seria ao nível ambiental, através da valorização das nossas condições de produção, alicerçadas em práticas de elevada sustentabilidade quando comparadas com a dos países nossos fornecedores. Contudo, a Europa anula esta vantagem não fazendo cumprir uma espécie de fair play “agro-genético-químico”.
Importa-se aquilo que não podemos produzir. Moléculas de fitofármacos que já foram banidas há anos na Europa continuam a ser usadas nesses países exportadores. Os OGM são um “mero” detalhe, para não falar das condições laborais. Nada disto parece fazer sentido, e do ponto de vista comercial é altamente injusto. Mas os mercados são assim. Os interesses instalados não são novidade. Os mercados são o Golias da agricultura.
É verdade que esta concorrência desleal é muito penalizadora para a Europa, especificamente para os seus agricultores. Contudo, ainda que seja verdade que aos agricultores europeus, neste caso produtores de cereais, e de milho em particular, é obvia a desvantagem que lhes é imposta, afigura-se exagerado crer que em situação de igualdade de produção se poderia ser totalmente competitivo em larga escala. Façamos um exercício inverso. Imaginemos que no “outro lado” do mundo, os países produtores de milho tinham, hipoteticamente, as mesmas condições de produção que temos na Europa. Teríamos alguma vantagem competitiva que desse músculo à nossa produção? Não sei, mas sei que o efeito de escala de muitos países produtores é avassalador, e os custos de contexto são e continuarão a ser incomparáveis.
Chegados a este ponto, em que o mercado dita o que dita, e a realidade é o que é, resta a cada espaço económico definir as suas opções. Teremos força para obrigar a que o comércio de commodities seja alterado no sentido de atenuar alguma injustiça concorrencial? Talvez não, pelo menos não tem sido assim nos últimos tempos.
Ondes estão, pois, as pedras com que o agricultor David pode derrotar o grande mercado Golias? Dar dimensão estratégica à produção de cereais. Esta é uma opção de natureza política, aliás facilmente justificável, dado tratar-se da base da nossa alimentação. Atenuar o custo que cada agricultor suporta por imposição do modelo produtivo europeu é um imperativo.
É verdade que essa compensação já faz parte das regras da atual política, mas falta-lhe “músculo”. Se assim não acontecer, resta-nos colocar as pedras de David no sapato, e irmos vivendo com fé e, talvez, rezar para que haja uma seca no Corn Belt…
Rui Veríssimo Baptista, administrador da Companhia das Lezírias SA
→ Leia este e outros artigos na edição de fevereiro 2025 da Revista Voz do Campo.