Durante três dias, no final de junho, Sever do Vouga voltou a afirmar-se como a capital do mirtilo com a realização da 17.ª edição da Feira Nacional do Mirtilo.

No Parque Urbano, atravessado pela ribeira do Pessegueiro, o evento reuniu mais de uma centena de expositores, entre produtores, empresas e agentes do setor turístico e cultural, reforçando o estatuto do concelho como território pioneiro e dinamizador da produção de mirtilo em Portugal.

O presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga, Pedro Lobo, resumiu a essência do evento ao dizer que se trata de “três dias intensos em redor deste que é o chamado rei do antioxidante”. A história do mirtilo no concelho remonta a 1990, quando um engenheiro holandês, ligado à Fundação Bernardo Barbosa de Quadros, identificou em Rocas do Vouga (uma freguesia do concelho) as condições ideais para o cultivo do fruto. “O solo com pH ácido, as temperaturas frias no inverno, amenas no verão, e a disponibilidade e vontade das pessoas em aprender tornaram este território perfeito para a cultura”, recorda o autarca. “Foi um segredo bem guardado aqui de Sever do Vouga”, argumenta.

Desde então, a produção conheceu uma transformação profunda. Em 2009, existiam cerca de 40 hectares de produção, concentrados sobretudo em Sever do Vouga, com pequenas explorações familiares. Hoje, como salienta Pedro Lobo, “há explorações com centenas de milhões de pés”, e no mundo já se ultrapassam os 500 hectares em algumas áreas. Apesar disso, lamenta que os pequenos produtores enfrentem as mesmas exigências legais que os grandes. “Isso não faz sentido. Se continuarmos por aí, assistiremos ao abandono da cultura”, partilha o autarca.

Uma das barreiras mais sentidas está na certificação. “Mil euros é muito dinheiro para quem tem 300 plantas”, sublinha Pedro Lobo, referindo que a criação de uma Indicação Geográfica Protegida seria essencial para promover uma discriminação positiva e valorizar a produção local.

Pedro Lobo conhece bem os desafios da produção, já que antes de liderar a autarquia também foi produtor de mirtilo.

“Hoje não produzo nada. A única coisa que produzo é papéis”, brinca. Ainda assim, mantém-se atento às dificuldades do setor, incluindo as pragas como a drosófila suzukii e a ação destrutiva da “praga” dos javalis. “As fêmeas, sobretudo com os filhotes, destroem bastantes plantações”, considera. Apesar dos obstáculos, o mirtilo continua a ser um apoio fundamental à economia familiar de muitas pessoas do concelho. O autarca observa que muitas dessas produções subsistem graças à mão de obra familiar, que “não entra nas contas”, o que torna esta cultura ainda mais relevante num território marcado pelo minifúndio.

A Feira Nacional do Mirtilo representa, por isso, uma oportunidade de promoção e escoamento da produção.

“Não digo que consigam fazer aqui toda a comercialização, mas que é uma grande ajuda, é”, afirma o edil, realçando também a diferença entre consumir mirtilos diretamente do produtor ou comprá-los nas grandes superfícies. “É completamente diferente. Um mirtilo apanhado no próprio dia tem um sabor que não se compara com outro que já leva semanas de prateleira”, sublinha Pedro Lobo.

Para garantir esse sabor, o mirtilo deve ser apanhado com um grau de maturação adequado. “O fruto ganha açúcar na planta. Se for apanhado verde, até pode ficar azul, mas nunca adoça”, explica. E garante: “Aqui em Sever do Vouga temos praticamente essa garantia”.

O autarca falou também sobre a diversidade da fruta, referindo variedades como a Duke — ainda a mais usada na região — e outras mais invulgares como o Pink Lemonade, um mirtilo cor-de-rosa. “Muitas pessoas dizem que o mirtilo não sabe a nada ou é muito ácido. Isso depende da variedade e do momento da colheita”, acrescenta.

Além da vertente agrícola, o evento reforça a estratégia de desenvolvimento turístico do concelho. A autarquia criou uma rede colaborativa que junta alojamentos, restauração e empresas, com grande entusiasmo em divulgar o mirtilo e os seus derivados. Na Feira, é possível provar compotas, xaropes, infusões, marmeladas e licores de grande qualidade, produzidos localmente.

“Utilizamos esta Feira e o fruto para desenvolver um território”

Paulo Nogueira, vice-presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga A Feira Nacional do Mirtilo assume-se como “uma montra do que nós temos em Sever do Vouga”, afirma o vice-presidente da Câmara Municipal, Paulo Nogueira. O objetivo é duplo: “Valorizar aquilo que é nosso enquanto território de Sever do Vouga, mas também olhar para aquilo que se faz pelo país fora”. O mirtilo, como produto, tem um papel estruturante. “Permite um fator importante para todos, que é um fator de coesão territorial”, nota o autarca. Iniciado em zonas de baixa densidade, tornou-se “um motor para tornar a agricultura atrativa para aqueles que a praticam”.

Apesar da relevância da produção — com 95% da fruta exportada — o consumo interno continua baixo. “O consumo nacional é seguramente também uma das coisas que pretendemos impulsionar (…). Para isso, temos várias ações promoção nas escolas. É através dos mais novos que muitas vezes conseguimos atingir os mais velhos”, adianta Pedro Nogueira. Contudo, o apelo estende-se à distribuição: “Temos que pedir aos nossos comercializadores nacionais que olhem para a fruta portuguesa”. O mirtilo nacional, por ser colhido mais maduro, “apresenta melhores condições de sabor”. Segundo o autarca, “se a fruta não for colhida tão verde, não perde sabor”, e isso deve ser valorizado nas prateleiras nacionais.

“Temos pela frente um desafio importante, que tem a ver com a alteração de variedades e o aumento da qualidade da fruta”, diz. O autarca pede programas de apoio “para a atualização dos pomares, a implementação de tecnologias e a substituição por variedades mais produtivas”. As acessibilidades são outra prioridade. “Se conseguíssemos reduzir o tempo de acesso às grandes vias de comunicação, reduzíamos o custo de transporte por quilograma”, sublinha Paulo Nogueira.

Para o autarca, a Feira é também uma forma de promover o território: “Utilizamos esta Feira e o fruto para desenvolver um território”. E deixa um desafio final: “Aqueles que ainda não provaram o mirtilo, ou que lhe fazem cara feia, venham a Sever do Vouga, provem as diferentes variedades e façam o seu próprio juízo”.

A presença do Ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz (em representação do Governo) na Feira é entendida como um sinal de compromisso.

“Há hoje quase 3 mil hectares de mirtilo distribuídos por todo o país”

Carlos Adão, presidente da Associação Nacional de Produtores do Mirtilo (ANPM), explica à Voz do Campo o papel do “Concurso Mirtilo de Portugal”, realizado durante a Feira Nacional do Mirtilo e os desafios do setor.

Segundo o dirigente associativo, “o Concurso pretende distinguir produtores com o melhor mirtilo numa lógica de consumo”, avaliando “um conjunto de critérios, como o sabor, visual, textura, calibre, cor, tátil e resistência”. O foco, reforça, “não é uma abordagem técnica ou científica, mas sim a experiência do consumidor”.

Trata-se já da segunda edição, que premia os melhores com troféus de ouro, prata e bronze, além de prémios complementares com produtos da AgriPro e participações no Encontro Nacional de Produtores. “Este Concurso é uma ação de divulgação que estimula os produtores a fazer mais e melhor e dá notoriedade a quem aposta em variedades que agradam mais ao consumidor”, diz Carlos Adão.

Sobre a evolução do setor, o presidente da Associação Nacional de Produtores do Mirtilo destaca que “há hoje quase 3 mil hectares de mirtilo distribuídos por todo o país”, embora “Sever do Vouga continue a afirmar-se como a capital do mirtilo, porque foi onde tudo começou”.

“Este legado é respeitado por todos os produtores”, afirma. O setor tem “uma fileira muito dinâmica, com produtores jovens, empenhados na qualidade e na aprendizagem constante, tornando-se uma referência no setor agrícola nacional”. Carlos Adão reconhece que, apesar do crescimento, há desafios importantes. Sobre a água, diz que “não falta água, o que falta é a sua gestão adequada, e é fundamental que existam políticas transversais para garantir que a água chegue onde é necessária”. Sobre a mão de obra, “a utilização de imigrantes é fundamental e tem casos excelentes de integração social”. Mas há outro lado: “Muitos pequenos produtores recorrem a mão de obra local, mas enfrentam dificuldades burocráticas para integrá-la legalmente. É necessário criar um instrumento que facilite a contratação diária e à jorna, com pagamento simplificado dos impostos”. A burocracia é outro ponto crítico: “A interação com entidades públicas e os processos de licenciamento continuam muito penosos e dificultam a atividade diária dos produtores”.

Outro problema específico e grave é a praga drosófila Suzuki, que Carlos Adão chama de “pânico dos pequenos frutos em Portugal”. O presidente da ANPM reforça a necessidade urgente “de uma estratégia nacional que envolva várias fileiras, as amoras, as framboesas, a cereja com monitorização, com- bate, investigação e disseminação de informação”.

Por fim, reafirma o papel da Associação Nacional de Produtores do Mirtilo: “Trabalhamos para ser parte da solução, encontrando respostas junto das entidades públicas e privadas, para enfrentar estes problemas e desenvolver o setor”.

Os vencedores do Concurso de Mirtilo de Portugal 2025:

1º Classificado – MIRTILO DE OURO – (amostra #11) – Variedade: Draper – Produtor: Quinta da Redouça

2º Classificado – MIRTILO DE PRATA – (amostra #01) – Variedade: Draper – Produtor: Gonçalo Bernardo

3º Classificado – MIRTILO DE BRONZE – (amostra #09) – Variedade: Blue Ribbon – Produtor: JSC II Organic Berries, Lda.

“Vale a pena investir nos pequenos frutos”

Pedro Brás de Oliveira, investigador do INIAV e membro do júri do Concurso de Mirtilo de Portugal 2025, ressalta a importância do evento: “Esta iniciativa de mostrar o melhor, é sempre um incentivo para o produtor”. Para o investigador, “Portugal não tem dimensão para ser um player em quantidade, mas tem que ser um player em qualidade. E este concurso (…) só o simples facto de incentivar o produtor de que ele tem um mirtilo de qualidade, que as pessoas apreciaram, é indiscutivelmente uma mais-valia para a produção e para o país”.

Draper destaca-se entre as variedades no Concurso de Mirtilo de Portugal

Pedro Brás de Oliveira, investigador do INIAV

Sobre as variedades, Pedro Brás de Oliveira explica que “as variedades mais antigas estão a ficar obsoletas” e que “a reconversão do mirtilo não é muito fácil. O produtor tem que investir em novas plantações”, destacando ao mesmo tempo que “há um boom muito grande de variedades novas”, mas que “esse boom fechou, portanto, não estão disponíveis a todos os produtores”. Isto cria uma concorrência “um bocadinho desleal”, diz Pedro Brás de Oliveira.

Contudo, “nas variedades que estão livres para todos os produtores, ainda há variedades interessantes (…) como foi o caso da Draper, que ganhou o primeiro e segundo lugar no Concurso Nacional de Mirtilo”.

Sobre o futuro, o investigador afirma que “os programas de melhoramento são muito ativos” e procuram “variedades que sejam resistentes a pragas e doenças”, acrescentando que “o consumidor começa a ter cada vez mais importância no mercado, e essa é uma tendência relativamente nova”.

Pedro Brás de Oliveira comenta ainda que “o equilíbrio açúcar-ácido é o mais importante dentro de um fruto,” e que “aroma e sabor são coisas não muito fortes no mirtilo”.

À nossa reportagem Pedro Brás de Oliveira destaca também a evolução do consumo: “As cuvetes passaram de 125g para 250g, depois para meio quilo, e já estão a pensar em um quilo na prateleira”. O investigador justifica que “o mirtilo tem esse atrativo porque eu consigo comer uma grande quantidade sem ficar cansado (…) é fresco”.

Sobre pequenos frutos em geral, aponta que “os pequenos frutos em Portugal estão bem, recomendam-se e o volume de exportação é muito elevado” e lembra que “em termos de valor exportado, a framboesa representa 25% da fruticultura (…). Portugal é um dos 6 ou 7 produtores mundiais em framboesa e mirtilo”.

Em relação aos desafios, Pedro Brás de Oliveira aponta que “há um grande número de problemas, nomeadamente relacionados com alterações climáticas”. Cita exemplos: “Basta um granizo forte fora de época no Norte para destruir uma plantação” e “no Sul falta a água”.

Sobre a atratividade da fileira para jovens agricultores, diz que “há muitos jovens que estão a pensar em pequenos frutos”. Explica a diferença entre culturas: “O mirtilo pode ser feito ao ar livre no Norte, com um investimento não muito elevado. Já a framboesa exige cultura protegida, substrato e é para o Sul”. Pedro Brás de Oliveira destaca a aposta crescente na amora no Algarve, que em dois anos aumentou a exportação de 10 para 38 milhões, devido à adoção da tecnologia de cultura protegida.

Ao terminar, Pedro Brás de Oliveira reforça que “vale a pena investir na fileira dos pequenos frutos”, destacando que “os pequenos frutos estão muito organizados, com grandes players internacionais e diversas organizações de produtores”. No entanto, alerta que “o produtor tem que se enquadrar numa organização, já não se consegue fazer nada sozinho”.

→ Leia este e outros artigos completos, na Revista Voz do Campo  edição de julho 2025, disponível no formato impresso e digital.

A Voz do Campo acompanhou a 17.ª edição da Feira Nacional do Mirtilo.

Veja a vídeo-reportagem:


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