Nestes últimos dias, de intensos contactos com os decisores políticos e stakeholders, europeus e nacionais, sobre a legislação da União Europeia relativa às cadeias livres de desflorestação (EURD) – que tem impacto em matérias-primas tão relevantes para diferentes setores, como a soja, palma, café, cacau, borracha, madeira e bovinos – lembrei-me de um livro publicado em fevereiro de 2009, da autoria de Dulce Neto, que conta a experiência de Eduardo Marçal Grilo durante o seu mandato de 4 anos enquanto Ministro da Educação.
Esse livro intitula-se Difícil é Sentá-los. É um livro pausado, de quem procurou o diálogo e os consensos nos grandes temas educativos, mas também entre os analistas políticos, que tudo julgam saber e que, afinal, não dominam as matérias. É, igualmente, um livro sobre os jornalistas que não fazem o trabalho de casa, sobre deputados que “escapam pouco à preguiça” e sobre os sindicalistas que estão longe das escolas. Também lá se fala dos educadores que não conseguem sentar os alunos e das constantes idas à Assembleia da República, durante as quais era difícil sentar os representantes do povo e os decisores políticos de então. No fundo, um arrastar de decisões, sem que nada se resolvesse, efetivamente. Muita gente a opinar sem perceber dos assuntos.
Provavelmente, o conteúdo do livro é hoje uma caricatura dos tempos atuais e talvez peque por defeito. Assistimos a um corrupio de idas dos governantes à Assembleia da República, a temas “inventados” para a agenda mediática e, não raras vezes, num Parlamento fortemente fragmentado, damo-nos conta que, afinal, nem sabemos quem elegemos, e a ausência de respeito pelas Instituições vai fazendo o seu caminho e minando, por dentro, o sistema democrático. Bruxelas não será melhor, mas é todo o processo de decisão que está em causa.
Se o tema da biotecnologia ligada à agricultura, já o referimos por diversas vezes, é uma verdadeira “via sacra”, pelos avanços e recuos, o dossiê da desflorestação arrisca-se a não ser muito diferente, marcado pela cegueira ideológica e teimosia de alguns decisores e de uma Comissão Europeia, que deveria estar coesa, pelo menos neste final de Mandato, e que é, aparentemente, incapaz de decidir, perante as evidentes consequências de uma legislação que não é exequível, não só pelo desconhecimento da realidade das empresas e dos mercados, mas também pela sua complexidade e pela falta de meios de controlo e de fiscalização por parte das autoridades dos Estados-membros.
Que fique claro que somos contra a desflorestação e a favor da biodiversidade. A favor da florestação, das reduções das emissões, das condições de vida dignas e da luta contra o trabalho escravo. Defendemos, igualmente, que é importante transportarmos estes “valores civilizacionais” da Europa, para o mercado global. No entanto, quando o consumo da União Europeia representa cerca de 10% da desflorestação mundial, não seria igualmente relevante olharmos para os restantes 90%, sobretudo quando a legislação europeia desprotege os operadores europeus, não respeita as legislações nacionais dos países exportadores, cria uma incerteza jurídica e instabilidade, e potencia disrupções nas cadeias de abastecimento? Esta é uma questão importante, pois a consequência lógica da implementação destas iniciativas legislativas, tal como estão delineadas é perfeitamente clara: aumentos de preços nas matérias-primas afetadas, desde logo a soja, mas também o cacau e o café, numa conjuntura de preços em alta. É preciso recordar que os países fornecedores não vão estar em condições de cumprir as regras europeias até final do ano. Para além de eventuais disputas legais em sede da Organização Mundial do Comércio, esses países, designadamente o Brasil, tenderão a exportar a soja para a China, que, aparentemente, não parece preocupada com estas questões.
Tudo isto já foi dito e redito por muitos de nós, pela cadeia alimentar, pelos representantes dos países exportadores, até que foi possível convencer o Comissário Agrícola – depois da insistência da maioria dos Estados-membros, no âmbito de um Conselho Agrícola (cujos Ministros não tutelam este dossiê) – a escrever uma carta à Presidente da Comissão, com conhecimento dos seus colegas do Ambiente e Clima, tendo em vista o adiamento da entrada em vigor da legislação por mais um ano, o que seria suficiente para as necessárias alterações. Os argumentos são os que aqui utilizamos, acrescentando dados concretos de um projeto-piloto que testou o funcionamento da legislação e que concluiu que “ainda há muito a fazer”, desde logo ao nível dos sistemas informáticos, bases de dados, rastreabilidade, acréscimos de custos que podem ir até 25%, mas também à complexidade da “due dilligence”, numa altura em que em Bruxelas e nos Estados-membros, discutimos (e bem) a simplificação.
Na semana passada, depois de uma carta enviada pela FEFAC ao Presidente do Conselho em exercício (Bélgica), com conhecimento dos Comissários e da Presidente Von der Leyen, foi agora um conjunto de 13 organizações europeias, desde a cadeia alimentar à madeira, borracha, pneus, florestas, papel…que enviou mais uma exposição à Presidente da Comissão, solicitando que tenha em consideração as suas preocupações, que são as preocupações das empresas que representamos, alertando para as graves consequências de manter a decisão da aplicação da legislação a partir de janeiro de 2025. Os serviços da Comissão ainda têm muito trabalho a fazer como, por exemplo, a categorização dos países por níveis de risco.
Entretanto, ainda no dia 17 de maio, no quadro de uma reunião de uma delegação de 10 organizações europeias, coordenada pelo COPA/COGECA, com o Comissário Wojciechowski, a principal conclusão foi a de que “a União Europeia ainda não está pronta para introduzir o novo Regulamento e que precisamos de dar respostas às vossas preocupações”.
Saudamos todo este esforço do Comissário Agrícola e da DG AGRI e não podemos deixar de lamentar a ausência de resposta (até ao momento) da Presidente Úrsula von der Leyen, talvez a aguardar um parecer final da DG ENVI, convencida de que ainda vai ser possível satisfazer cabalmente as inquietações das diferentes organizações, que representam o tecido económico da União Europeia.
O desejo (?) de agradar aos movimentos ambientalistas e a um certo fundamentalismo ecológico, não se pode sobrepor ao que iremos perder em termos económicos e sociais (sim, também é sustentabilidade), perante uma legislação que apenas vê a árvore (Europa) e não a floresta (Mundo).
Ao nível da Alimentação Animal fizemos saber, desde há muito tempo, que 94% das importações de soja são provenientes de áreas de baixo risco de desflorestação, 42% da soja cumpre os critérios do Guia de Aprovisionamento da FEFAC, que pode servir como referência das melhores práticas, e que devemos alcançar um abastecimento livre de desflorestação sem um impacto significativo na oferta e nos preços.
Temos de prosseguir o diálogo e tentar convencer a Presidente da Comissão, dos impactos negativos da EURD. Muito provavelmente, a Comissão von der Leyen poderá estar a aguardar por orientações do Conselho. O pior cenário seria o adiar a decisão para depois das eleições para o Parlamento Europeu.
O tempo joga claramente contra nós, quando é certo que toda esta incerteza e instabilidade só pode conduzir a aumentos de preços e especulações desnecessárias. Tudo isto numa altura em que muitos operadores não estão a fornecer preços de soja para 2025, quando o que precisamos é de previsibilidade e segurança no abastecimento.
De facto, neste conjunto de (in)definições, não nos podemos queixar se o próximo Parlamento Europeu tiver uma forte configuração populista e radical.
São os próprios decisores a “colocarem-se a jeito”, o que é, em nossa opinião, absolutamente lamentável.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA