Opinião de David Catita, Engenheiro do Ambiente e Agricultor

O papel da política em relação à agricultura é, por vezes, menosprezado uma vez que aparentemente apenas interfere com o tipo de ajudas a atribuir aos agricultores. Porém, a postura do poder político vigente irradia junto das entidades oficiais um tipo de conduta (facilitadora ou bloqueadora) que afeta o setor agrícola de forma subliminar.

Um agricultor moderno é sem dúvida um empreendedor, cuja atividade avança com base nos investimentos que está disposto a fazer ou nas novas abordagens que pretende implementar. Contudo, como a mudança mete medo às entidades, cada nova abordagem foi já coberta por um conjunto de obrigações e necessidades de licenciamento que, na verdade, são inúteis para o propósito em apreço.

Olhemos para o exemplo concreto da compostagem, o processo simples e natural de juntar materiais orgânicos e produzir um fertilizante orgânico para melhoria do solo e nutrição das culturas, defendido globalmente como uma forma eficiente de sequestrar carbono, usar a água e os nutrientes de forma mais eficiente, e contribuir para a redução dos fatores que favorecem as alterações climáticas e a erosão.

Em janeiro de 2023 a Agência Portuguesa do Ambiente publicou as Regras Gerais para a Compostagem Agrícola, que isentam esta prática de licenciamento, até ao limite de 27 375 toneladas por ano, devendo o agricultor cumprir um conjunto de regras e registos. Na altura pareciam ótimas noticiais, mas afinal esta isenção era apenas a ponta do iceberg que estava no caminho de uma postura agrícola mais ambiental e sustentável.Se um agricultor, com uma exploração incluída numa área de regadio pretender fazer compostagem com os seus subprodutos e assim ajudar o solo, a cultura, a água e o ambiente, terá de obter ainda o licenciamento junto das seguintes entidades:

Autoridade da Reserva Agrícola Nacional (DGADR, DRAP/ CCDR) que, segundo o entendimento atual, não considera a compostagem uma atividade complementar à atividade agrícola;
Autoridade Nacional do Regadio (DGADR), uma vez que a compostagem não é uma atividade prevista nos Regulamentos do Empreendimentos Hidroagrícolas;
Direção Geral de Alimentação e Veterinária (Legislação SPOA);
Câmara Municipal da área respetiva, para avaliação do cumprimento dos instrumentos de gestão do território vigentes;
Todo um novo processo legal bastante complexo, caso o agricultor queira vender algum do composto produzido.

Na verdade, o que o se está a dizer a estes agricultores, que querem seguir um caminho novo, melhor e mais sustentável, é que o Estado não gosta de empreendedores. Se quiserem queimar tudo e contribuir para as alterações climáticas que levam o Estado a implementar tantas políticas e impostos, não tem problema. Mande um SMS para “Queimas e Queimadas” e já está.

Mas se quiserem fazer algo que acrescente valor ao território, não favoreça o começo de incêndios e contribua verdadeiramente para um mundo melhor… temos aqui um longo e penoso caminho à vossa espera, que um agricultor nunca conseguirá superar.

Leva-nos a pensar porque é que isto acontece… será que todos estes papéis fazem sentido? Fazem falta? Alguém, algum dia, olhará para eles? Apetece perguntar quantos impressos de compostagem de estrume é que existem? Assinados e carimbados nos seus quatro exemplares? Qual a lógica desta burocracia? Resulta alguma ação concreta com base nesta informação? É desenvolvido algum tipo de aconselhamento nas áreas de risco? Ou serve só para ilibar as entidades caso algo corra mal?

É aqui que está a linha invisível que separa quem quer bloquear a mudança de quem quer empreender a mudança. Suponho que não o fazem por mal, mas todos sabemos que é mais confortável que nada mude, que as coisas se mantenham como estavam… não é necessário pensar de novo. Muitas destas entidades acumulam exigências, mas raramente são questionadas acerca do porquê das exigências. E será que as diferentes entidades responsáveis pela aplicação da legislação em vigor não estão a tornar demasiado complexa a sua aplicação? É aqui que reside o papel da política. A alternância política permite que os novos políticos consigam ver de fora como as instituições estatais interagem com os setores privados e, deste modo, dá-lhes a importante capacidade de questionar a razoabilidade da burocracia.

As instituições parecem por vezes pensar que os contribuintes servem para cumprir as suas determinações, mas na verdade são as instituições que devem servir os contribuintes, auxiliando a sua atividade, de forma proativa e construtiva. A vida do campo já tem dificuldades suficientes e o Estado não deve ser mais uma.

A burocracia, ou a forma de funcionamento das instituições, não podem ser factos inquestionáveis. Questionar a sua lógica é meio caminho andado para termos uma agricultura melhor e mais sustentável.

Em termos agroambientais o caminho errado ainda é o caminho mais fácil.

→ Leia este e outros artigos na Revista Voz do Campo: edição de junho 2024