“É imperativo que Portugal aposte em tecnologias modernas, como a inteligência artificial e a agricultura de precisão, para combater a crise do setor e atrair os jovens para a agricultura”
O titular da pasta da Agricultura e Pescas, José Manuel Fernandes, em entrevista exclusiva à Voz do Campo, aborda não apenas as questões internas, mas também as geopolíticas, como o impacto do acordo União Europeia-Mercosul e a colaboração entre nações.
O facto de ter acumulado 15 anos de experiência na Europa, na Comissão de Agricultura e na Comissão de Orçamentos, considera que lhe dá um know-how especial para liderar esta pasta?
Eu não tinha consciência da mais-valia que foi o facto de ter estado na negociação de todos os orçamentos anuais, de ter sido coordenador do Partido Popular Europeu na Comissão de Agricultura e, mais no final, na Comissão Coordenadora dos Orçamentos. E, para ser mais preciso, também fui membro da Comissão de Agricultura. Enquanto Coordenador do PPE na Comissão dos Orçamentos, fazia a distribuição dos dossiês, estive na negociação do quadro financeiro plurianual, que no fundo nos deu os montantes que temos hoje até 2027. Ainda que, no Portugal2030, seja a regra N+2, o que nos leva até 2029.
Isso também nos permitiu ter acesso ao PRR. Foi um trabalho intenso, nos vários regulamentos, e o facto de ter estado na Comissão dos Orçamentos, deu-me uma visão transversal. Foram reuniões de 22 horas, trabalho com instrumentos financeiros, um conhecimento profundo que hoje percebo ser extremamente útil para estas funções. Além disso, já tinha estado, noutro mandato, na Comissão de Agricultura, o que reforçou ainda mais este conhecimento.
Há uma série de assuntos que gostaríamos de abordar. Mas, vamos fazer uma abordagem o mais geral possível. Comecemos por aqui: Temos assistido a uma preocupação crescente com a febre catarral dos ovinos (doença da Língua Azul). O que tem sido feito pelo Ministério para combater este surto e apoiar o setor?
Atuámos de imediato. Assim que tivemos conhecimento do serotipo 3, no dia 13 de setembro, reagimos prontamente. E no dia 23 de setembro já tínhamos dado autorização temporária para a utilização da vacina. Agora podem perguntar: Mas porque é que o governo não comprou as vacinas? Nós não comprámos porque elas não chegariam em tempo útil – só daqui a 3 ou 4 meses, o que não era viável. Então, para novembro e dezembro, alocámos 1 milhão de euros para apoiar os produtores que adquiriram as vacinas. Essa foi a forma mais rápida de agir.
É importante referir que esta vacina ainda não está autorizada para comercialização. Para poder aplicá-la, foi necessário existir um caso de língua azul, o que nos levou a derrogar um regulamento. Foi um pouco temerário, mas fizemos o que era necessário para que as pessoas pudessem comprar a vacina. Além disso, reforçámos a recolha de animais com um ajuste direto de 2,5 milhões de euros, que está a aguardar o visto do Tribunal de Contas. E estamos a pedir aos produtores que não tenham medo de notificar a doença. No passado, muitos receavam que isso implicasse o sequestro da exploração ou a impossibilidade de vender os animais, mas só nos ajudam se notificarem. Já houve momentos em que tínhamos 50 000 animais mortos, mas apenas 4000 notificações. Isso impede-nos, por exemplo, de acionar a reserva de crises da União Europeia.
Ainda sobre a Língua Azul, há planos de prevenção?
Há, claro. Estamos a trabalhar num plano de desinsetização em parceria com o INIAV, que inclui armadilhas para monitorizar os insetos e avaliar a carga virulenta. Mas não estamos livres de surgirem novos serotipos, para os quais ainda não há vacinas. É por isso que defendo uma investigação forte, ao nível da União Europeia. Não faz sentido cada país fazer a sua própria investigação isolada.
O fogo bacteriano na pera rocha e a podridão da castanha são outros desafios sanitários. Como o Ministério está a abordar esses problemas?
Mais uma vez termos investigação associada. Defendo fortemente as novas técnicas genómicas, que não são mais do que um acelerar do processo, do tempo, para que uma planta resista a pragas e a doenças, ou, também por exemplo, a condições climatéricas adversas. Não tem nada a ver com organismos geneticamente modificados. São técnicas que permitem criar plantas mais resistentes. É algo que considero positivo e fundamental.
Como equilibrar sustentabilidade, competitividade e segurança alimentar?
A agricultura tem uma transversalidade que, muitas vezes, não é percecionada pelas pessoas. Ela é competitividade, é coesão territorial, é transformação industrial, é investigação e inovação, é sustentabilidade ambiental. Mas, antes de tudo isso, é segurança alimentar. Quero dizer isto com toda a clareza: é comida no prato. Felizmente, temos um Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, que considera a agricultura estratégica e estruturante.
Temos projetos como o “Água que Une”, que pretende armazenar e distribuir água de forma eficiente para a agricultura e para o consumo humano, através de uma rede eficiente interligada. Permita-me que diga, que este plano é verdadeiramente revolucionário e que exigirá não só fundos do Orçamento de Estado, dos Fundos Europeus da Política de Coesão e Política Agrícola, como instrumentos financeiros, o Banco Europeu de Investimentos para o podermos concretizar com este objetivo e com esta visão transversal, onde envolve ambiente, agricultura e economia de mãos dadas.
Produtos de países terceiros que utilizam fitofármacos proibidos na União Europeia têm prejudicado a competitividade. Como se pode resolver isso?
Temos que exigir reciprocidade. Não podemos ser protecionistas, mas se a saúde é o argumento para proibir determinados produtos aqui, como explicar que eles entrem na União Europeia? Precisamos de uma ciência ao serviço destes objetivos, para desenvolver fitofármacos que não façam mal à saúde, que protejam as plantas e que sejam acessíveis.
Falando em investigação. No caso de Portugal, temos de falar do INIAV.
O INIAV tem programas importantes. Mas, é preciso integrar esforços a nível europeu. É importante que se perceba que há um desperdício se cada país fizer a sua investigação, quando temos todos os países, todos os Estados-membros da União Europeia afetados, por exemplo, pelo serotipo3- língua azul. Tem-se de juntar esforços e investir fortemente e com isso conseguem-se ganhos de escala. Temos o maior programa de investigação do mundo na União Europeia – o Horizonte Europa – reforçado com um pilar dedicado à agricultura e alterações climáticas. Só assim conseguiremos soluções eficazes para problemas comuns como a língua azul, dos fungos que existe na castanha, na vinha (…).
Mas, há abertura por parte de Bruxelas?
Sim, há uma recetividade crescente. Notei isso em reuniões com o Ministro da Agricultura da Alemanha e a Ministra da Agricultura dos Países Baixos. Existe essa abertura porque há uma compreensão cada vez maior de que a partilha de esforços e recursos gera melhores resultados. Não é preciso cada um andar com um orçamento nacional e a utilizar recursos, pois se estiverem juntos consegue-se um resultado muito superior, são problemas comuns. Não há fronteiras na questão das alterações climáticas e quem pensar que um determinado serotipo que entra na Holanda, não vai chegar a Portugal está completamente desatualizado. Por exemplo, para combatermos inclusivamente estas doenças é preciso uma outra coisa que eu tenho insistido nela: há uma disparidade monumental entre Estados-membros. A Holanda não dá dinheiro nenhum para as vacinas, são as pessoas que a assumem. Nós aqui, por exemplo, serotipo 1 e 4 compramos e demos 3,4 milhões de doses. Em Espanha, são os governos regionais que vão apoiando. Mas, para que haja uma erradicação e uma imunização, o próprio orçamento da União Europeia devia comparticipar a vacinação, porque isto é um problema que atinge todos, e se um não fizer o trabalho dele está a prejudicar os outros e, portanto, esta partilha, solidariedade, coordenação e concertação numa série de domínios é essencial.
Considerando o Acordo União Europeia-Mercosul, que benefícios este tratado poderá trazer especificamente para Portugal?
Tem vantagens. Em primeiro lugar é preciso explicar que o acordo representa 750 milhões de pessoas e 25% do PIB mundial. Para o Mercosul, há a obrigação de cumprir cláusulas de sustentabilidade e sociais, o que representa um grande desafio para eles. Portugal sem ele, tem um défice anual. Para Portugal, o acordo poderá melhorar substancialmente as exportações, por exemplo, de vinho, azeite e Pera Rocha, setores que atualmente enfrentam barreiras alfandegárias elevadíssimas. Sim, há preocupações com a pecuária, mas o acordo inclui quotas que equilibram a situação. Sem este acordo, a União Europeia perde espaço, que será ocupado por países como a China. Este é um ponto essencial, especialmente no atual contexto geopolítico. Trata-se de uma aliança estratégica onde todos têm a ganhar.
Herdou do anterior Ministério da Agricultura a reformulação das direções regionais para as CCDR. Nesse sentido, o que está a ser feito para mudar essa reformulação?
Estamos a introduzir uma alteração legislativa que ainda não está em vigor, mas que trará um reforço significativo. Esta alteração terá um upgrade porque o novo responsável de agricultura de cada Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, ou, de cada região para sermos mais corretos terá as competências que tinha antes o diretor regional, portanto é como se tivéssemos novamente um diretor regional e, adicionalmente, será vice-presidente da CCDR, nomeado pelo Conselho de Ministros sob proposta do Ministério da Agricultura. Isto assegura uma tutela única e uma articulação mais eficiente entre os serviços regionais e o governo central. Além disso, os contratos-programa da CCDR, até agora sob a alçada exclusiva do Ministro Adjunto e da Coesão, passarão a ser elaborados em conjunto com o Ministério da Agricultura. Este modelo reforça o papel da agricultura, um reconhecimento da importância da agricultura e da sua transversalidade (…) é preciso agricultura de precisão, uma agricultura dos dados onde haja conectividade, onde exista a Internet das coisas, mas para isso é preciso que haja Internet nos territórios. Não é a Política Agrícola Comum que vai levar a Internet aos territórios vão ser, por exemplo, os programas operacionais regionais.
Falando agora da floresta. Todos os anos enfrentamos incêndios florestais que deixam marcas profundas. O que está a ser planeado para mitigar este problema? Está em curso alguma iniciativa para melhorar o cadastro florestal?
Estamos a elaborar um pacto para a floresta, com uma abordagem que integra as vertentes económica, social e ambiental. Não podemos continuar a estudar os mesmos problemas sem avançar com soluções concretas. Há um foco no cadastro, essencial para resolver questões de propriedade, mas também no combate à burocracia, que muitas vezes impede o avanço dos processos. Há ministérios que estão a trabalhar connosco neste pacto, de legislação que tem de ser revista. Por exemplo, cerca de 60% dos terrenos que existem são de pessoas que já faleceram e, portanto, muitos deles estão em processos de herança, e muitas vezes é mais caro o registo, as escrituras do que o valor da compra e há gente que desiste e que não faz o emparcelamento que tanto era necessário. O cadastro é obviamente essencial. Há aí novas oportunidades que devem ser conjugadas e tidas em conta, os mercados de carbono e a disponibilidade de investimentos nessa área, mas também a compatibilização com o compromisso que temos e a aprovação daquilo que foi a lei de restauro da natureza (…).
→ Leia a grande entrevista ao Sr. Ministro da Agricultura e Pescas, José Manuel Fernandes e outros artigos completos na Revista Voz do Campo – edição de janeiro 2025, disponível no formato impresso e digital.
(Re)Veja a entrevista ao Ministro da Agricultura e Pescas