Porque tivemos de esperar 50 anos?

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“A questão que não pode deixar de ser colocada é – Professor Avillez, porque é que tivemos que esperar 50 anos para ler este texto?”. Assim termina o comum amigo Professor Manuel Correia o seu entusiástico Prefácio ao livro que aqui nos reúne. Felizmente tive o privilégio de não só o ter lido, mas também estudado, durante o ano lectivo 1973-1974, quando, como aluno finalista do curso de engenheiro agrónomo professado no Huambo, fiz a disciplina de Economia Rural com uma classificação que deve ter sido considerada no convite que o então jovem assistente Francisco Avillez haveria de me fazer para integrar a equipa responsável pelas disciplinas de Economia Rural e de Sociologia Rural no ano lectivo seguinte. Começou assim uma amizade que muito me honra e perdura até aos dias de hoje. Por isso não hesitei em aceitar o convite para estar aqui, convite que muito agradeço.

Duas razões explicavam a minha inclinação e o meu desempenho naquela disciplina. A empatia que desde o início das aulas se estabeleceu com o mestre devido às suas qualidades profissionais e humanas – nunca é demais fazer lembrar que o contexto da época era muito complexo – , e o interesse que a matéria tratada despertou no espírito inquieto do  jovem que via o curso de agronomia não apenas na perspectiva profissional, mas também no desiderato cívico e político. Era o desejo utópico de colaborar na irradicação da fome no mundo e a antecipação da necessidade de o ensino e a investigação agronómica em Angola terem de dar, em primeiro lugar, resposta aos problemas da maioria da população e dos agricultores angolanos, em especial porque a independência, injustamente adiada, forçosamente não tardaria.  Daí que o estudo das matérias em boa hora introduzidas na disciplina se tenha tornado um assunto que ultrapassava, de longe, o interesse académico, pois iam ao encontro da ânsia em conhecer as condições de vida e de trabalho dos agricultores angolanos, que, já naquela altura, não deveriam ser considerados, por mim e pelos companheiros de causa, agricultores “tradicionais” e muito menos “de subsistência”, pois, por exemplo, no então distrito de Malanje, canalizavam para o mercado mais de 50% das suas produções[1], contrariando assim o que o Professor Avillez , citando alguém, afirma, que em África, nessa época, pareceria ser correcto “afirmar que o autoconsumo representa ainda mais de metade da produção obtida”. Atraía-me, também, o recurso a uma terminologia que, não sendo revolucionária, rompia com o diktat da altura, ou as referências, ainda que superficiais, aos aspectos antropológicos relacionados com a ocupação do território e a organização das, ou em, comunidades e sua evolução, algo de fundamental importância para o jovem inquieto e sedento de se encontrar com as identidades africanas que o ensino exclusivamente de feição europeia lhe negara ao longo de quase vinte anos.

Foi, pois, com naturalidade, que numa conversa informal após um encontro de trabalho em Cascais, corria o ano de 2008, sugeri ao Professor Avillez e ao colega Manel Medeiros a possibilidade de se publicar as lições ministradas naquele tempo. Fi-lo por diversos motivos. Conhecia vários professores e outros profissionais interessados em entender e estudar a problemática das agriculturas familiares angolanas na sua vasta diversidade, e que sabiam, pelas citações em alguns textos meus, da existência das “folhas” do Engenheiro Avillez, sendo que o meu velhinho exemplar ciclostilado e encadernado, sublinhado e comentado, era o único de que havia conhecimento no País, pois os restantes teriam seguido para a antiga metrópole ou ter-se-iam perdido na voragem das guerras que nos assolaram. Além disso, eram mais do muitas as críticas públicas por mim feitas aos economistas angolanos – já que economistas agrários eram raros e estavam afastados da docência e da investigação – por não se interessarem pela economia dos diferentes tipos de agricultura – o petróleo, as finanças e a banca eram muito mais atractivos. A divulgação do trabalho do Professor Avillez, ainda que naturalmente necessitando de actualizações e de aprofundamento, poderia representar um incentivo para que jovens investigadores se sentissem estimulados a usá-lo como ponto de partida e referência para o estudo de um conjunto matérias pertinentes. Cito,  a título de exemplo, os diversos sistemas de produção praticados no território e sua evolução, nomeadamente no que se refere à relação entre a inevitável redução da duração dos pousios e as transformações tecnológicas necessárias para o desejado aumento da produtividade e garantia de sustentabilidade; a análise das produtividades da terra e do trabalho e de outros factores nesses sistemas de produção; ou os condicionalismos do aparecimento no chamado Planalto Central angolano de uma economia de tráfico que substituiu o comércio caravaneiro dos Ovimbundu, mas que não permitiu, antes pelo contrário[2], rápidos aumentos de produção, como o Professor Avillez e a bibliografia que ele convoca sugerem. Os agricultores Ovimbundu, os mais avançados de Angola, não conseguiam rendimentos suficientes para evitar o seu destino trágico de complementarem os parcos rendimentos com o tristemente famoso “contrato”, vendendo a sua força de trabalho nas plantações de café, nas minas de diamantes ou nas pescarias do litoral.

Contribuíra também para aquela proposta de 2008 o facto de terem sido por mim utilizados conceitos definidos pelo Professor Avillez, ou por ele divulgados, sobre questões de vária ordem. Menciono, a mero título ilustrativo, a funcionalidade do uso dos conceitos de direito geral e de direito específico de utilização da terra para caracterizar diferentes situações derivadas de uma menor ou maior pressão demográfica, ou da existência de sistemas de produção com culturas de produtos exportáveis. O primeiro conceito, direito geral, está ainda hoje ligado a sistemas de exploração da terra comunitários predominantes nas extensas regiões subpovoadas do Leste de Angola, enquanto o segundo, direito específico, está mais presente no Planalto Central e nas periferias das grandes cidades, onde a pressão demográfica é maior, bem como nas regiões de produção de café. Permite-se, assim, falar de posse individual ou familiar da terra e associar ao direito específico o conceito de vínculo, uma espécie de norma jurídica socialmente aceite que assume o valor de um título e cujo cadastro se encontra, unicamente, na mente de pessoas idosas de uma dada comunidade.[3]

Terminada a guerra em Angola, em 2002, foi proposta por uma equipa de peritos da FAO e, também, por outra de consultores portugueses, no âmbito do que foi conhecido como Plano 2025, uma abordagem que conformava o que se poderia considerar uma estratégia de desenvolvimento estrutural da agricultura familiar. Porém, o governo angolano ignorou essa proposta e apostou noutra direcção que, estranhamente, repousava na instalação de um conjunto de empreendimentos públicos faraónicos – no que ficou conhecido em alguns círculos, como o Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, por “Dubai Agrícola” – e deixou a agricultura familiar praticamente ao abandono. Essa estratégia só viria a ser abandonada em meados da segunda metade deste novo   século, quando o “Dubai Agrícola” ruiu com estrondo e o agronegócio e a agricultura familiar passaram a merecer mais atenção. A confirmar algo que vinha do passado, esta última, considerada de modo preconceituoso “de subsistência” e praticamente votada ao abandono durante quase 40 anos, garante mais de 80% dos alimentos de produção nacional. Contudo, a sua evolução, principalmente da parte do seu segmento mais dinâmico, está condicionada pela falta de conhecimento do que ela é e representa para além dos estereótipos que imperam.

Como transformar o que não se conhece? Como referiu o Professor Manuel Correia, era incompreensível como a agricultura familiar não constituía matéria curricular aprofundada no tempo colonial, e mesmo actualmente isso acontece em todos os cursos de agronomia, quer em instituições públicas, quer privadas. Daqui resultam penosas dificuldades para os técnicos recrutados para os serviços de extensão, pois o seu conhecimento sobre as agriculturas familiares e sobre as comunidades rurais é inexistente. Nos últimos anos do tempo colonial essa lacuna era, em parte, resolvida com um treinamento específico a cargo do serviço de extensão rural, eu próprio frequentei o primeiro realizado em 1971. Hoje isso não acontece, o que compromete quaisquer esforços que visem aumentos de produtividade e de produção. Isso, só por si, faz-me pensar na pertinência da publicação deste livro.

Cabem ainda aqui algumas considerações sobre a transição das economias agrícolas ditas pré-capitalistas para as diferentes formas que actualmente assumem nas regiões subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, assunto que preenche mais de metade do livro. Mais do que soluções ou receitas, o que o autor fornece aos interessados é um conjunto de ferramentas de análise que, apesar de não serem actuais, podem ajudar futuros estudiosos da matéria a equacionar as diferentes hipóteses que tais transições podem conformar.

Apesar do avanço da ciência e da técnica nos últimos quase 100 anos, o chamado conhecimento endógeo, nativo ou indígena (indigenous technical knowledge), muitas vezes conhecido como “saber-fazer”, transmitido pelas práticas através dos tempos e das gerações, tem vindo a ganhar cidadania epistemológica. Apesar de continuar a ser um país exportador de petróleo, Angola tem de encarar a hipótese de ter de se desenvolver contando mais, ou sobretudo, com os seus recursos internos, entre os quais os seus agricultores e o respectivo conhecimento. Os projectos e programas de transferência de tecnologia e de conhecimentos, responsáveis pelo crescimento das dívidas externas, não têm impedido a pauperização tendencial das agriculturas “tradicionais” devido à quase impossibilidade de concorrência com agriculturas desenvolvidas que, devido aos seus elevados níveis de produtividade, transmitem um sistema de preços incomportável para as primeiras. Perante isso, há que repensar os paradigmas de desenvolvimento, de modo a que instituições e factores como capital social, capacidades e habilidades humanas, conhecimento, investigação, sejam geridos no interior de cada território, baseando-se nas suas potencialidades e visando um desenvolvimento a partir do interior.

Com isto reforço a ideia inicial e retomada ao longo desta intervenção sobre a importância da obra. Que ela possa influenciar os meios universitários agronómicos para que a economia da agricultura, incluindo da agricultura familiar, venha a ser matéria curricular. Voltando ao Professor Manuel Correia, a publicação do livro só peca por tardia.

Obrigado, Francisco!

Lisboa, 2024, Novembro, 6

Fernando Pacheco

[1] Cf Estado Português de Angola (1973), Caracterização Genérica do Distrito de Malanje. Luanda: Gabinete de Estudos da Secretaria Provincial de Finanças e Planeamento.
[2] Os dados da extinta Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola (MIAA) relativos ao início da década de 70 eram suficientemente elucidativos. Ver Missão de Inquéritos Agrícolas – MIIA (1971), Recenseamento Agrícola de Angola. Vol XXIX. Luanda: MIIA.
[3] Ver Santos, Edgar; Morais, Júlio (1973), Plano de Desenvolvimento do Distrito do Huambo: Projecto de Demarcação de terrenos de 2.ª classe. Nova Lisboa.

Origem: AGROGES

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