“Se quisermos produzir o suficiente, precisamos de novas variedades”
A produção de sementes em Portugal e fitossanidade, as Novas Técnicas Genómicas (NTG), a regulamentação das novas tecnologias na União Europeia e a competitividade da agricultura nacional face a países onde as NTG estão autorizadas foram os temas que alicerçaram o debate no Simpósio Semente & Biotecnologia – Da Inovação à Sustentabilidade, que a ANSEME e o CiB – Centro de Informação de Biotecnologia realizaram no dia 27 de Janeiro, em Coimbra. Aqui ficam algumas das conclusões.
O Simpósio Semente & Biotecnologia – Da Inovação à Sustentabilidade, que teve lugar no Hotel Quinta das Lágrimas, contou com a presença de vários investigadores e agentes do setor agrícola. Dividido em três paineis de discussão e duas mesas redondas, o evento pretendeu alertar para a importância das novas técnicas genómicas (NTG) ainda não regulamentadas na União Europeia e discutir aspetos relacionados com a dependência alimentar e relações de concorrência com outros países fora da UE, onde estas tecnologias são já uma realidade.
Chamando a atenção para a “necessidade de termos uma agricultura com um elevado nível de precisão e cada vez mais eficiente na utilização dos recursos”, o Diretor Regional da DRAPC, Fernando Alves Martins, abriu a sessão com uma referência ao papel das NTG para garantir a segurança e autonomia alimentar. “A pandemia e a guerra na Ucrânia tornaram isso cada vez mais premente. A resposta a essas necessidades só pode ser através da inovação. As novas técnicas genómicas permitirão o recurso a instrumentos que ajudarão os agricultores a produzirem mais com menos.”
No seu discurso, também o vice-presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Francisco Veiga, afirmou que “a guerra na Ucrânia veio colocar em evidência a nossa dependência externa de matérias-primas, nomeadamente cereais”, e que “o grande desafio é a sustentabilidade da produção agrícola, com recurso às novas tecnologias.”
Paula Cruz Garcia, sub-Diretora Geral da DGAV, iniciou o primeiro painel dedicado ao tema “Produção de Sementes em Portugal e Fitossanidade” com a apresentação dos dados da produção de sementes na União Europeia disponibilizados pela ESCAA, que indicam que Portugal, com 4.900 hectares de área semeada de multiplicação de semente, “está muito aquém daquilo que poderia produzir a nível de produção de sementes”. Paula Cruz Garcia sublinhou que “o setor de produção nacional de sementes ainda é relativamente modesto, com 38 produtores de sementes licenciados.” Relativamente à quantidade de semente certificada por categoria, a produção de semente tem vindo a diminuir e a maior parte é de 2ª geração, o que significa que “estamos a multiplicar sementes de 1ª geração que vêm de outros países”. Quanto à exportação, Paula Cruz Garcia afirmou que é “muito limitada, Portugal praticamente não exporta semente.”
Esta área de atividade é fortemente regulamentada, mas a sub-Diretora Geral da DGAV salientou que a legislação, que data dos anos 60, não está adequada à realidade atual. “A legislação está desatualizada. Há normas nesta regulamentação que restringem de alguma forma a inovação e o crescimento do setor.”
Paula Cruz Garcia terminou a sua apresentação dizendo que a Comissão vai apresentar em Junho de 2023 uma proposta legislativa para as sementes e materiais de multiplicação e, ao mesmo tempo, uma proposta legislativa sobre as novas técnicas de melhoramento vegetal. “As propostas vão ser apresentadas em conjunto porque fazem parte do mesmo pacote”, o que para a sub-Diretora Geral da DGAV “é sinal de que a Comissão quer integrar as novas técnicas de melhoramento num domínio mais amplo que é a produção de sementes na Europa.”
O segundo painel deste encontro foi dedicado ao tema “Novas Técnicas Genómicas (NTG)” e contou com a apresentação de Priscila Jacobitz, gestora dos assuntos governamentais da CropLife Europe, associação que representa as empresas europeias de biotecnologia. Priscila Jacobitz começou por falar do quadro regulamentar europeu das NTG, que por decisão do Tribunal de Justiça Europeu (TJE) em 2018, determina que as NTG estão sujeitas aos mesmos requerimentos legais aplicados aos Organismos Geneticamente Modificados (OGM), mesmo nos casos em que são similares a plantas convencionais. Priscila Jacobitz salientou que “pelos métodos atuais, não se conseguem distinguir os produtos obtidos através de NTG dos produtos resultantes da mutação natural ou aleatória.”
A gestora dos assuntos governamentais da CropLife Europe alertou que com a atual legislação das NTG “será muito difícil assegurar a igualdade de tratamento entre os produtos importados e os produtos produzidos na UE, será impraticável exigir métodos de deteção (necessários para a autorização dos OGM) e será impossível aplicar as mesmas regras de rotulagem e rastreabilidade”. No entanto, como referiu a palestrante, em abril de 2021 a Comissão Europeia apresentou um estudo solicitado pelo Conselho sobre o estatuto das NTG, cujas conclusões resumiu em três pontos: os produtos vegetais obtidos por meio de NTG podem contribuir para os objetivos do Pacto Ecológico da UE; a falta de métodos de deteção constitui um problema para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei e para os operadores; as dificuldades na deteção de NTG podem causar perturbações no comércio e colocar os operadores da UE em desvantagem concorrencial.
Com base no estudo publicado em abril de 2021, a Comissão Europeia anunciou que iniciaria uma proposta de quadro regulamentar para plantas obtidas por meio de cisgénese e mutagénese dirigida. Segundo Priscila Jacobitz, a CropLife Europe (CLE) espera que seja um “quadro regulamentar proporcional e requisitos de aprovação proporcionais aos diferentes perfis de risco, avaliados caso a caso”, e que considere vários aspetos, entre os quais avaliação de risco/requisitos de aprovação, avaliação de sustentabilidade, rastreabilidade e rotulagem.
Priscila Jacobitz terminou a sua intervenção referindo que a CropLife Europe tem uma posição muito clara relativamente às NTG: “Um quadro regulamentar proporcional e baseado na ciência é crucial para permitir o desenvolvimento e a adoção das NTG na UE. As plantas derivadas de NTG, que também possam ser obtidas por métodos de seleção convencionais ou que ocorram espontaneamente na natureza, devem ser tratadas da mesma forma que plantas convencionais. Para desencadear o potencial das NTG na UE, é necessário um sistema de verificação para determinar se plantas são semelhantes às convencionais e permitir a aplicação de requisitos proporcionais. Esta abordagem é aplicada na maioria dos países terceiros.”
Seguiu-se a apresentação da investigadora Ana Margarida Fortes, Professora Auxiliar na Faculdade de Ciências da UL e diretora do Laboratório de Genómica Funcional de Frutos e Biotecnologia, que começou por evidenciar o resultados de uma consulta pública da UE sobre as NTG, segundo os quais 80% dos 2.200 inquiridos reconhecem que as técnicas de melhoramento mais recentes, como a mutagenese dirigida e a cisgénese, não estão bem legisladas. De acordo com Ana Margarida Fortes, “não há razão científica para considerar que estas plantas têm riscos associados, nomeadamente se comparadas com as plantas que resultam da mutagénese aleatória e que não têm uma legislação tão apertada.” A este propósito a investigadora citou a EFSA, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar, segundo a qual “as variedades obtidas por novas técnicas genómicas têm essencialmente o mesmo perfil de risco que as variedades vegetais produzidas pelo cultivo convencional.”
Ao contrário dos antigos métodos ‘inexatos’, “as alterações são feitas de uma forma deliberada, direcionada e mais precisa. Portanto, podemos avaliar melhor estas alterações e quaisquer riscos”, acrescentou Ana Margarida Fortes, que não tem dúvidas de que “o potencial das novas tecnologias de melhoramento é enorme”. Como exemplos referiu as aplicações que já estão a ser feitas em alguns países e que resultam em mais alimentos (melhores rendimentos, características de qualidade) melhores alimentos (menos pesticidas, mais nutritivos), melhor saúde (produção mais fácil e mais barata de produtos biofarmacêuticos), protecção do ambiente e sustentabilidade. Apontou como exemplos o tomate roxo geneticamente editado enriquecido com GABA e o arroz e milho que em ensaios no terreno registaram um aumento na produção de 10% graças à tecnologia CRISPR (uma ferramenta de edição do genoma).
Ana Margarida Fortes mencionou ainda a sua própria experiência no Laboratório de Genómica Funcional de Frutos e Biotecnologia, onde atualmente utiliza o CRISPR-Cas9 para desacelerar a maturação do tomate e, deste modo, evitar as perdas pós-colheita. “Já conseguimos algum desaceleramento da maturação”.
Terminadas as apresentações, seguiram-se as mesas redondas. A primeira, dedicada ao tema “O papel das NTG no melhoramento de Plantas”, contou com a moderação de Pedro Fevereiro, diretor executivo do InnovPlantProtect (InPP), e a participação de Paula Cruz Garcia (DGAV), Priscila Jacobitz (Croplife Europe), André Brito (Fertiprado) e Manuel Laureano (ANSEME). Depois de uma breve introdução em que explicou por razão os agricultores, além de precisarem de mais variedades, precisam dessas variedades mais rapidamente, Pedro Fevereiro dirigiu as primeiras perguntas a André Brito, investigador na Fertiprado – As novas técnicas genómicas são mesmo necessárias para quem produz e comercializa sementes? Qual o impacto potencial desta tecnologia numa empresa que também desenvolve novas variedades? Tendo em conta que a “inovação faz parte do DNA da Fertiprado”, André Brito afirmou que existe a “necessidade de desenvolver variedades com novas características (como o aumento das percentagens de proteína)” e que a empresa considera as novas tecnologias de melhoramento como “uma oportunidade”, pelo que terão um “impacto positivo no desenvolvimento nas nossas próprias variedades, nomeadamente no que se refere à redução de custos e de tempo.”
Dirigindo-se a Manuel Laureano, membro da direção da ANSEME, Pedro Fevereiro quis saber como é que as empresas produtoras de sementes vêem o desenvolvimento destas tecnologias e a sua aplicação ao melhoramento e à produção de novas variedades. Também perguntou se a hesitação da União Europeia na adoção desta tecnologia prejudicará as empresas de produção e comercialização de sementes. A resposta de Manuel Laureano foi clara: “O objetivo das empresas é encontrar soluções que respondam às necessidades dos agricultores e o meio que têm de responder a essas necessidades é o melhoramento”. O problema, advertiu, é que “o tempo que demora a fazer melhoramento convencional não se compadece com a velocidade a que precisamos de aplicar essas soluções. A necessidade surge hoje, mas a solução só surge daqui a 8 ou 10 anos. É muito importante conseguir encurtar esse tempo.”
Manuel Laureano lembrou um estudo realizado pela Euroseeds que mostra que, nos últimos 20 anos, o melhoramento foi responsável pelo aumento médio da produtividade de 1.2/ano. “Se este aumento de produtividade não tivesse acontecido, a Europa tinha-se tornado num importador de cereais. Segundo o mesmo estudo, para alcançar a mesma produtividade sem melhoramento tinhamos que abrir 22 milhões de hectares. Para mim, a questão fundamental é o tempo”, acrescentou.
A Paula Cruz Garcia o moderador perguntou se existem condições para aumentar a produção de sementes em Portugal e desenvolver programas de melhoramento. Relativamente ao potencial de produção, a sub-Diretora Geral da DGAV afirmou que o país “pode produzir mais sementes”. Referindo-se aos dados estatísticos da produção nacional de 2023, “mais positivos que os de 2022”, afirmou que se “perspetiva um aumento”, dando como exemplo a área de girassol. Relativamente a outras espécies, disse que também há condições para aumentar a produção. Paula Cruz Garcia acredita que a ajuda específica à produção de sementes prevista no PEPAC poderá contribuir para isso, uma vez que “tem como finalidade precisamente fomentar o aumento da produção de sementes a nível nacional.”
As últimas questões da mesa foram dirigidas a Priscila Jacobitz. Pedro Fevereiro quis saber por que razão a UE avalia o produto de acordo com a tecnologia aplicada e não de acordo com as características do produto final e, por último, como é que vamos continuar a promover a inovação nesta área se a Europa não conseguir acompanhar a regulamentação que já existe noutros países terceiros. À primeira pergunta, a gestora dos assuntos governamentais da CropLife Europe respondeu: “Essa é a questão do milhão de dólares.” Para a indústria e para a ciência, Priscila Jacobitz disse que essa seria a forma mais coerente de ter uma legislação que garante segurança (humana, animal e ambiental) e transparência, porém seria uma mudança muito grande em relação ao quadro regulatório atual. Há uma distância muito grande entre o que faz sentido do ponto de vista da ciência e o que pode ser feito a nível político. O debate é muito técnico e o processo de aceitação pública leva tempo. É por isso que as mudanças legislativas são pequenas e progessivas, não acontecem ao rítmo que a ciência gostaria.”
Relativamente à segunda questão, Priscila Jacobitz disse que a regulamentação atual das NTG “já exerce um impacto na inovação muito grande”. Desde que o Tribunal de Justiça Europeu colocou as NTG na diretiva dos OGM, “houve imediatamente uma redução dos projetos de investigação que estavam a surgir na UE.” E no futuro “o impacto será maior, porque haverá pouca investigação na UE, haverá uma ausência quase total do plantio (atualmente, na Europa, só Portugal e Espanha produzem OGM e apenas uma variedade), e o custo de acesso à tecnologia será muito alto para os pequenos produtores (os produtos que hoje beneficiam dessa tecnologia são a soja, milho e algodão, para os quais existe um mercado global)”, perspetivou.
Já da parte da tarde teve lugar a segunda mesa redonda, que contou com a moderação de Pedro Santos (Diretor-Geral da Consulai), e a participação de Jaime Piçarra (IACA), Jorge Canhoto (CiB), Pedro Pereira Dias (ANSEME), Jorge Azevedo (CAP) e Isabel Cardoso (FIPA). Foram discutidos vários temas, nomeadamente a regulamentação das variedades obtidas por NTG, a agenda política da UE, o impacto que a regulamentação pode ter nos custos para a inscrição de novas variedades, o rastreio, entre outros, mas os temas que dominaram o debate foram a regulamentação e a rotulagem. A opinião da Mesa foi unânime em ambos os temas. Todos os participantes consideram que é necessária uma nova legislação para as NTG baseada em ciência, que permita à UE fazer face à concorrência de países mais competitivos como o Brasil, Argentina, Estados Unidos, Canadá e Rússia, onde as novas tecnologias já são uma realidade e podem ser implementadas. Caso contrário, “a UE continuará a importar alimentos.”
No que respeita à rotulagem, todos afirmaram que “rotular os produtos obtidos por NTG não faz sentido”. Uma ressalva foi feita pelo Secretário-Geral da IACA, Jaime Piçarra, que não concordando com a indicação no rótulo de que determinado produto foi produzido por NTG, alertou que “o Parlamento Europeu certamente ‘tocará’ na questão” e que “o sector deverá estar preparado com argumentos convincentes.”
O evento foi encerrado pelos presidentes das entidades organizadoras, Jorge Canhoto, do CiB, e Pedro Pereira Dias, da ANSEME, com uma mensagem-chave: a biotecnologia, entendida como um conjunto de ferramentas de modificação genética das plantas, tem desempenhado um papel fundamental na obtenção de novas variedades e, neste contexto, as chamadas novas técnicas genómicas irão permitir revolucionar a forma como se faz o melhoramento, contribuindo para uma agricultura mais sustentável e para a conservação da biodiversidade.