“Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Revista “Voz do Campo” a oportunidade que nos dá para responder a algumas questões relevantes, na qualidade de recém-nomeado perito de Portugal na NATO na área da segurança das cadeias de abastecimento, e que conhecemos genericamente como segurança alimentar (food security), ou seja, a capacidade que temos para levar os alimentos a toda a população, para conter ou mitigar conflitos e ameaças, cada vez mais frequentes.”

Jaime Piçarra, Perito nacional na NATO na área da segurança do abastecimento alimentar e secretário-geral da IACA, Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos para Animais.

• Quais os fatores que ameaçam a segurança do abastecimento alimentar a nível global?

Um dos fatores mais evidentes são as alterações climáticas que deslocam milhões de pessoas, são responsáveis pela erosão dos solos, perdas de biodiversidade e, sobretudo, carências hídricas e pelas perdas de culturas. Temos hoje infelizmente fenómenos extremos e cada vez mais frequentes, de secas, inundações que originam fome, desnutrição e migrações. E os conflitos armados, as tensões regionais, instabilidade nos governos, em que os alimentos são utilizados como arma de arremesso, como temos visto nas duas guerras que maiores consequências têm trazido para a Europa, na Ucrânia e no Médio Oriente. Por outro lado, existe uma tendência para o protecionismo, em detrimento do multilateralismo, trazido pela globalização e que foi um dos motores do desenvolvimento económico mundial.

“A dependência da China é outra questão preocupante sobretudo ao nível dos aditivos para a alimentação animal”

Vivemos hoje numa sociedade muito interdependente, em que a União Europeia não é uma Ilha, mas não nos podemos fechar numa estratégia isolacionista, o que não significa que não devamos olhar para a nossa autossuficiência ou redução da dependência, face aos desafios e às ameaças que temos pela frente. A dependência da China é outra questão preocupante sobretudo ao nível dos aditivos para a alimentação animal. A pandemia da COVID-19 conduziu a disrupções nas cadeias de abastecimento, ainda hoje não completamente restabelecidas. Algumas das lições que devemos retirar foi a de que dependemos uns dos outros e que as cadeias logísticas são mais importantes do que alguma vez imaginámos. Em Portugal, as matérias-primas e bens essenciais, quer para a alimentação animal, quer humana, estiveram sempre presentes nas explorações agrícolas ou pecuárias, unidades fabris, distribuição alimentar ou restauração, devido a um enorme esforço e resiliência, interajuda entre todos os operadores, excelente articulação com as autoridades oficiais e em Bruxelas, com a Comissão Europeia.

“A Comissão de Acompanhamento que tão bem funcionou durante a pandemia, deveria ter um carácter permanente, podendo reunir pelo menos 4 vezes anualmente”

Falta-nos uma estratégia (cultura?) assumida de cooperação entre a Administração e os operadores, não apenas nos momentos de rutura, mas nas situações do dia-a-dia para que consigamos antecipar as crises e evitar situações de gravidade extrema.  A Comissão de Acompanhamento que tão bem funcionou durante a pandemia, deveria ter um carácter permanente, podendo reunir pelo menos 4 vezes anualmente. Torna-se ainda obrigatório avaliar os impactos das políticas púbicas nestas áreas tão relevantes, o que passa por um maior equilíbrio entre a agricultura e ambiente, sem quaisquer radicalismos de parte a parte, até porque nas sociedades atuais devemos auscultar todos, negociar, consensualizar posições. Nesta perspetiva, é desejável – veremos se vai ser possível neste próximo mandato do Parlamento Europeu – rever as ambições da Estratégia “Do Prado ao Prado”, pelo menos na sua velocidade de implementação, à luz dos impactos negativos que já conhecemos.

Que estratégias e políticas para garantir a segurança do abastecimento alimentar em áreas mais vulneráveis?

Infelizmente, devido a razões de natureza política, as instituições internacionais como a Organização Mundial do Comércio, mesmo as Nações Unidas, pese embora o prestígio da FAO, têm sido alvo de permanentes disputas por países ou blocos que se não revêm nas suas políticas, estratégias ou tomadas de decisão. China, Rússia, Brasil, África do Sul…o chamado Sul Global, desafiam o status quo instalado e nos últimos anos vimos entidades como a OMS ou a NATO a ganhar um peso crescente, na sequência da pandemia e da guerra da Ucrânia. Precisamos de uma diplomacia forte, confiança, transparência, menos populismo, apoios aos países mais vulneráveis, em termos de políticas globais, evitando as deslocações em massa para a Europa ou para os EUA. Existem sinais de alarme que não devemos ignorar. O recente relatório da OCDE-FAO sobre as Perspetivas Agrícolas 2024-2033 retira conclusões muito sérias: as economias emergentes, que têm liderado o desenvolvimento do agronegócio, irão continuar na próxima década; o papel da China no mercado global pode diminuir, transferindo-se para a Índia e o Sudeste Asiático, devido ao aumento populacional; o cumprimento do objetivo da fome zero será ainda muito lento e é vital o funcionamento das cadeias de abastecimento.

“O Mundo não está no caminho certo para atingir nenhuma das sete metas globais de nutrição até 2030”

Os preços das commodities podem tender a diminuir, mas não é crível que essa baixa tenha impacto no retalho, ou seja, nos preços ao consumidor. Por outro lado, o relatório da FAO sobre “O estado da segurança alimentar e nutricional no mundo”, mostra-nos que, a seis anos de 2030, os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), sobretudo os relativos à fome e insegurança alimentar, estão por cumprir.  São sugeridas políticas públicas, abordagens abrangentes e multissetoriais, estilos de vida saudáveis e escolhas alimentares, para que se alcancem as metas internacionais de nutrição. Certo é que o Mundo não está no caminho certo para atingir nenhuma das sete metas globais de nutrição até 2030.  No entanto, temos sinais de esperança como o que aconteceu recentemente no quadro do G20 e o lançamento no Brasil, da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Como sempre, dependerá da vontade e dos compromissos dos líderes mundiais e da existência de políticas públicas de ajuda aos países mais vulneráveis. Por exemplo a região do Mediterrâneo é considerada de tal maneira sensível – e temos a clara noção do que está em causa, desde o Mar Negro, à dependência de cereais – que a reeleita Presidente da Comissão Europeia pondera a existência de um Comissário específico para esta região. Ao nível da NATO existem igualmente as mesmas preocupações, pelas consequências para todos os aliados e em particular dos países do Sul da Europa.

Poderá a intensificação agrícola condicionar ou revolucionar a segurança do abastecimento alimentar?

Pese embora existam sinais de que a população tenderá a diminuir no mais longo prazo, continuará a expandir-se pelo menos nos próximos anos, conjugadas com duas realidades: a da subnutrição ou má nutrição e a obesidade, mais ligada às economias mais desenvolvidas e também às emergentes. Outro aspeto importante são os custos de uma alimentação saudável. A Alimentação irá estar sob pressão, tal como os sistemas de saúde e vamos certamente intensificar as discussões sobre os Sistemas Alimentares Sustentáveis, alterações de dietas, comportamentos e estilos de vida, em que o sal, gordura, açúcar e os alimentos ultra processados vão estar na ordem do dia.

“As produções terão de ser ecologicamente eficientes”

Os temas do veganismo, dietas vegetarianas, os flexitarianos… continuarão a dominar os debates, redes sociais e as páginas dos jornais, com a desinformação do costume, que temos de continuar a combater. No entanto, a sustentabilidade continuará a ser a grande referência, pelo que temos de olhar para a tecnologia e para a ciência, investigação & desenvolvimento & inovação como indispensáveis, a par do combate ao desperdício e a promoção da Bioeconomia circular. As produções terão de ser ecologicamente eficientes e nessa perspetiva acreditamos nas novas tecnologias como a biotecnologia, as novas técnicas genómicas, a agricultura regenerativa, de precisão, a alimentação de precisão. Com a aceitação destas tecnologias, um debate mais baseado nos dados científicos – comprovados e transparentes – “despido” de demagogia e de ideologias, contribuiremos certamente para uma maior segurança alimentar.

Quais os seus principais objetivos e o que fica a ganhar a agricultura portuguesa com esta nomeação?

Gostava de aproveitar esta oportunidade para agradecer ao GPP o convite para esta tarefa e a todos aqueles divulgaram a nomeação ou que me felicitaram e encorajaram nestas funções e desafios na minha carreira profissional. O objetivo será o de procurar colocar os temas da Alimentação na agenda política e mediática e que seja considerada, ao mesmo tempo, como estratégica para Portugal e para a União Europeia.

Numa altura em que em Bruxelas ganha importância o Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura, é também o futuro da Alimentação que está em causa. A reforma da PAC vai ser certamente uma reforma sobre o papel da agricultura, do agroalimentar, da estabilidade das cadeias de abastecimento e o seu papel, não só para a estabilidade dos preços e rendimentos, mas igualmente, na estabilidade das condições de vida dos europeus, sobretudo nas zonas rurais, evitando tensões e conflitos, e a afirmação do papel da União Europeia na geopolítica global.

Também está em curso uma discussão sobre a Estratégia de Autonomia Aberta da UE, iniciada pela presidência espanhola, de que não nos podemos alhear.

“Portugal tem vulnerabilidades como por exemplo a dependência de cereais, que é gritante…”

Desde há muito tempo que refletimos sobre as questões da segurança e da soberania alimentar e não apenas no COVID e no contexto das guerras da Ucrânia. Portugal tem vulnerabilidades como por exemplo a dependência de cereais, que é gritante, ou de fontes de proteína, para a alimentação animal e humana. Os stocks estratégicos bem como infraestruturas críticas devem ser considerados. A resiliência começa pela diminuição da dependência porque estaremos menos expostos à vulnerabilidade e volatilidade dos mercados. A segurança das cadeias de abastecimento, como ficou bem demonstrado num evento organizado recentemente pelo Conselho Nacional de Planeamento Civil de Emergência, é essencial para a nossa estratégia de defesa e uma das prioridades da NATO e de Portugal, como aliado. São temas que devem ser levados mais a sério pelos decisores políticos e pela sociedade civil, numa ligação entre os Ministérios da Agricultura e Pescas, Defesa, Administração Interna, Economia e Infraestruturas, o que pressupõe uma boa coordenação interministerial e do Primeiro-Ministro.

“Apenas posso prometer muito trabalho, o empenho que sempre tenho colocado nas funções que desempenho”

O que é que a agricultura portuguesa vai ganhar com a minha nomeação, não sei. Seguramente que o facto de termos um português no Grupo de Planeamento da Agricultura e Alimentação, que integra o Comité de Resiliência – que depende diretamente do Secretário-Geral – não deixa de ser positivo, se for capaz de afirmar os interesses de Portugal. Apenas posso prometer muito trabalho, o empenho que sempre tenho colocado nas funções que desempenho, defender as ideias em que acredito, com a noção de que este não é (não pode ser) um trabalho isolado, contando com o GPP, outras entidades ligadas ao Ministério da Agricultura e das Pescas, e com os meus colegas das organizações representativas da cadeia agroalimentar. Não deixar de refletir e de falar sobre a importância da Agricultura e do Agroalimentar para melhorar a vida de todos e de cada um de nós. E com isso trazer maior segurança e estabilidade porque é errada a visão de que a NATO é tão só uma estrutura militar.