A partir do ano 2000 e durante 4 anos, tivemos a oportunidade de integrar a delegação oficial portuguesa a reuniões do Codex Alimentarius (uma organização conjunta da FAO e da OMS), para discutir temas relevantes da alimentação animal a nível global.

Jaime Piçarra – Secretário-Geral da IACA

Foi, assim, construído, na base de muita discussão e com o consenso possível (quem já assistiu a estas reuniões, sabe o que é discutir parágrafo a parágrafo…) o Código de Boas Práticas para a Alimentação Animal, publicado em 2004, com a última atualização em 2008. É evidente, como já era então, que os patamares e conceitos dos países envolvidos eram completamente diferentes, mas já era exigido um enorme esforço a muitos deles, sobretudo em África ou na Ásia e alguns nem percebiam porquê. As regras da União Europeia não eram sequer comparáveis (como ainda não são hoje) e não se pretendia uma harmonização, mas um ponto de partida que, certamente, deu os seus frutos e é hoje mais bem entendido e, sobretudo, percecionado.

No entanto, no rescaldo das crises que a Europa viveu nesses tempos, não tão longínquos assim, em que tudo se misturava, desde as “vacas loucas”, às dioxinas, aos nitrofuranos e os OGM,  muito se percorreu (e bem) na União Europeia, atualmente com níveis de segurança (food safety) sem paralelo a nível mundial, na altura, a maior parte dos Estados-membros da organização não compreendia muitas das restrições, a não utilização de farinhas de carne ou as limitações às farinhas de peixe e o facto de matérias-primas que terem de ser destruídas…e ainda hoje, na “moderna” Europa, se encontra ceticismo e recusa de alguns em relação a alguns avanços (na Hungria, por exemplo), nomeadamente, na utilização da biotecnologia e dos OGM.

Pese embora as preocupações pela higiene dos alimentos, que dominavam então as agendas políticas –  com a diminuição do peso da agricultura face às questões da saúde e segurança alimentar, ou a transferência de poderes, da DG AGRI para a DG SANTE e as transformações da Comissão Europeia – para a maior parte dos colegas com quem contactávamos, o principal problema residia na (in)segurança alimentar, na disponibilidade e nos preços de aquisição dos alimentos.

Passados mais de vinte anos, com um panorama completamente distinto, em que as questões ambientais, de emergência climática, de saúde e bem-estar animal estão no topo da agenda dos decisores políticos, com uma Indústria e Agricultura que respondeu às exigências (e custos) decorrentes de um novo quadro legislativo, eis que depois de uma pandemia e de uma guerra na Europa, sem fim à vista, em que as questões da soberania e da segurança alimentar, o food security, deveriam ser prioritárias, regressámos, no fundo, à mesma questão: como explicar e justificar as políticas europeias no plano das relações internacionais?

Tivemos a oportunidade de visitar os Estados Unidos recentemente, participando em reuniões e eventos promovidos pela USSEC e aí pudemos discutir inúmeros dossiês: desde a logística aos mercados das matérias-primas, passando pela geopolítica e pelas tendências de mercado. Foram ainda abordadas a evolução das trocas comerciais, a China, a Rússia e a Ucrânia, as tensões regionais, o eventual alargamento da Europa e, claro, os impactos do Pacto Ecológico Europeu, as Novas Técnicas Genómicas, os Limites Máximos de Resíduos e a Desflorestação. Para além de encontros mais restritos, a Conferência principal contou com a presença de 700 participantes, provenientes de 60 países, de contextos e realidades políticas e socioeconómicos completamente diferentes, unidos pela necessidade de produzir alimentos e reforçar o multilateralismo nas relações comerciais.

É preciso ter mundo para entender o Mundo.

Também me questiono, cada vez mais, como é possível – em muitos temas com impacto nas nossas vidas e no mercado global, como o aprovisionamento de matérias-primas ou a dependência da Europa em energia e tantos outros setores – sermos incoerentes, atuarmos qual “rolo compressor”, como se fossemos uma ilha e o comércio internacional não fosse da maior relevância para a União Europeia. É como se negligenciássemos o nosso papel no abastecimento do mercado mundial.

De facto, parece faltar “mundo” aos nossos decisores políticos. Pese embora estejam cada vez mais envolvidos nas organizações e debates supranacionais, é a opinião pública e publicada, o nível de ruído, as tendências e sondagens, os alinhamentos políticos de ocasião, que condicionam as decisões e políticas, o que as torna, muitas vezes, não são compreensíveis, como, e, sobretudo, de difícil controlo e aplicação. E aqui estamos nós, infelizmente, para “apanhar” os cacos dessas contradições e a ter de lidar com as desconfianças dos consumidores e a ter de comunicar com a opinião pública. Pode ser assim no Green Deal, na estratégia “Do Prado ao Prato”, na legislação sobre a desflorestação ou nas Novas Técnicas Genómicas.

A sustentabilidade está na ordem do dia em todos os países, o que felizmente, já não é novidade, mas o que fica quando tentamos explicar as políticas da União Europeia (partilhando, muitas vezes, dos argumentos dos nossos interlocutores) é que não necessitamos de políticas tão drásticas para atingir os objetivos. Infelizmente, todos os impactos apontam para uma redução da produção europeia, maior dependência dos países terceiros e mais aumentos de custos, dos preços dos alimentos, inflação, juros, um pouco à semelhança do que estamos a viver atualmente com a continuidade da guerra na Ucrânia.

Já não somos nós que o dizemos.

A própria FAO ainda recentemente declarou que não devemos sacrificar a segurança alimentar em nome da sustentabilidade.

Na incerteza e instabilidade em que vivemos, com a guerra a entrar em novas escaladas e ameaças, agora no Danúbio, quase às portas da NATO, a logística é ainda mais necessária, bem como a coesão da Europa, e veremos, ainda, como se vai desenrolar o prolongamento do embargo aos cereais e as negociações com os vizinhos da Ucrânia. Com o reforço das Vias de Solidariedade, Roménia e Polónia tornaram-se mais sensíveis e mais expostos ao conflito. Para Portugal, a aposta é, cada vez mais, nas origens Canadá, Brasil, Estados Unidos…fora da União Europeia, que justificam maiores cuidados e atenção, desde logo na questão dos limites máximos de resíduos dos pesticidas, para não inviabilizar as descargas dos navios. Já fizemos sentir em Bruxelas e à DGAV a necessidade de revermos eventuais derrogações.

No entanto, temos outras questões sensíveis que se prendem com o funcionamento dos portos, das Alfandegas (ainda na semana passada tivemos atrasos devido à falta de assinaturas…) e a eterna SILOPOR que não nos cansamos de referir.

Mas a AGROGLOBAL (Parabéns pelo novo modelo) também permitiu discutir todos estes assuntos em diferentes painéis, mostrando que a agricultura, a pecuária, a alimentação animal, a indústria agroalimentar quer ser, e já é, parte da solução.

Permitam-me destacar um repto do nosso antigo colega das lides de Bruxelas (então ligado ao COPA/COGECA), Arnaud Petit, Diretor-Executivo do International Grains Council, na Conferência Internacional sobre a Produção Mundial de Cereais, quando referiu “wake up”, para que a União Europeia acorde para esta realidade, sob pena de nos confrontarmos com elevados custos no futuro.

Por muito que nos pretendam “anestesiar”, estamos acordados e, não raras vezes, com insónias.

Mas sei que não iremos permitir que nos embalem ou adormeçam nesta Agenda incompreensível, da demagogia (veja-se as análises sobre o glifosato), do politicamente correto e/ou alinhada com interesses desconhecidos, o ou da destruição de um valor fundamental: a necessidade de produzir alimentos seguros, que remunerem as diferentes fileiras e a preços razoáveis para os consumidores.

Estarão os decisores suficientemente despertos?

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA

Fonte: IACA