Nos últimos dois meses temos sido chamados a intervir em múltiplos debates sobre a segurança (soberania) alimentar, sustentabilidade ou melhoramento de plantas. Destacamos aqui duas iniciativas que, até pelo contexto e oportunidade, indiciam o que podemos esperar das autoridades portuguesas em momentos relevantes para o futuro da Agricultura portuguesa: as decisões sobre as Novas Técnicas Genómicas (NTG) e o glifosato.

Jaime Piçarra – Secretário-Geral da IACA

Em 6 de setembro, no quadro da Agroblobal, estivemos na Conferência sobre o Pacto Ecológico Europeu e os Desafios da Agricultura, no painel que abordou os Desafios do Melhoramento Genético, com uma excelente apresentação da keynote speaker, para introdução ao debate sobre as NTG e a comunicação da Comissão, que está ainda em discussão pública (é possível rever a Conferência em: https://www.youtube.com/watch?v=1i1DQcKTI7Q).

Mais recentemente, no dia 17 de outubro, marcámos presença numa parceria com o jornal Público. Organizámos, em conjunto com o InPP e o CIB, uma Conferência sobre a Importância da Biotecnologia para a Sustentabilidade na Agricultura. Porque a biotecnologia na agricultura, passados 25 anos sobre a introdução do milho Bt, ainda é um estigma, o objetivo era muito claro: analisar o impacto do melhoramento genético, das NTG, nas novas culturas agrícolas, e perceber até que ponto os fatores de produção podem ser aliados da soberania alimentar. Ou seja, poderão as inovações referidas ser instrumentos de competitividade e de sustentabilidade ao serviço dos agricultores nacionais e europeus? Poderão eles usar as mesmas ferramentas que os congéneres e concorrentes no mercado mundial? Qual o lugar e o papel da União Europeia (UE) na cadeia alimentar global, face aos desafios da transição climática, da (in)segurança alimentar, de regras mais restritas na saúde e bem-estar animal, condicionados pela Estratégia “Do Prado ou Prato” e num contexto de tensões crescentes no quadro internacional – a guerra na Ucrânia, o conflito israelo-palestiniano?

Neste quadro, convém, apesar de tudo recordar que a Europa ainda tem um excedente comercial agroalimentar, mas importa consolidá-lo.

Por outro lado, a UE tem sido inspiradora de políticas de vanguarda, que quer “impor” aos parceiros mundiais, mas o facto é que tem pouco peso político para os influenciar, sem conseguir exigir – pelo menos até hoje – as mesmas regras ou normas equivalentes às importações de países terceiros. Todos nós sabemos que a regulamentação europeia é a mais restritiva e sem paralelo, num mercado internacional fortemente concorrencial, mais defensivo e menos multilateral. Mas será que os decisores políticos e os legisladores, até mesmo os que não pensam como nós – o que não deixa de ser legítimo numa Sociedade livre e aberta – têm essa consciência?

No quadro destas reflexões veio-me à memória um artigo que escrevi em abril de 2009 intitulado “Coragem ou Hipocrisia?”  e que parece ter ganho atualidade.

É evidente que a discussão das NTG nada tem a ver com o glifosato, mas existem aqui elementos comuns que são evidentes: as decisões com base na Ciência e os impactos da sua (não) aceitação a partir do momento em que os dados e estudos científicos, credíveis, bem como os pareceres da EFSA, apontam para a inexistência de riscos para a segurança dos alimentos, ambiente, saúde animal ou humana.

No caso das NTG, existe uma comunicação da Comissão Europeia, em discussão no âmbito da presidência espanhola, que teve um acolhimento significativo de muitos Estados-membros, entre os quais Portugal. Espanha pretende chegar a um acordo até final do seu mandato, porque Bélgica e Hungria serão “os senhores que se seguem”. No essencial, a Comissão reconhece que estas novas técnicas de melhoramento são uma ferramenta importante para a sustentabilidade da agricultura.

Quanto ao glifosato, o processo é mais complicado, quiçá mais politizado. A Comissão Europeia, apoiada em pareceres científicos da EFSA e estudos efetuados ao longo de vários anos, tal como avaliações da ECHA, propõe a aprovação por um período de 10 anos. Não existe de facto uma maioria qualificada, nem a favor, nem contra, mas há uma maioria significativa de Estados-membros (16), entre os quais Portugal, favoráveis à proposta de renovação.

Em meados de novembro existirá uma nova votação e ao que parece, sem a maioria qualificada. Será a Comissão Europeia a tomar a decisão que deverá ser favorável, ainda que a renovação talvez aconteça por um período mais curto. Temos países claramente contra e nos quais a agricultura é relativamente incipiente. Outros, em que a atividade é relevante (Alemanha, França, Holanda), previsivelmente vão abster-se, o que denuncia a intenção de forçar um entendimento.

A avaliação de risco deve ser o valor mais seguro e intocável.

Nenhuma empresa, setor, ou as suas organizações representativas, quer comercializar ou colocar produtos no mercado que criem insegurança nas cadeias de abastecimento ou ponham em causa o ambiente, ou a saúde e proteção dos consumidores. Se a Ciência reconhece essa segurança, então deve competir aos decisores políticos a análise do impacto das suas posições e retirarem as devidas consequências.

Portugal necessita de matérias-primas como o milho e a soja para a alimentação, humana e animal, e os principais fornecedores no mercado mundial vão certamente utilizar as NTG, para serem mais competitivos, sustentáveis e responderem aos desafios ambientais, das alterações climáticas e das necessidades crescentes do mercado, com uma população em crescimento. Sem a harmonização e a aprovação dessa tecnologia, teremos certamente uma disrupção no aprovisionamento, agravamento de custos, e riscos de rutura, desde logo, na alimentação dos animais. Sem o glifosato, os agricultores ficam sem alternativas sustentáveis, terão de fazer mais tratamentos, com impactos ambientais negativos, certamente menores produtividades e mais baixos rendimentos. A agricultura de conservação ficará seriamente comprometida. No caso da alimentação animal temos ainda o problema dos Limites Máximos de Resíduos que, sem qualquer tolerância, iria complicar, senão mesmo impedir, o normal acesso ao abastecimento da Indústria nas suas diferentes origens.

A posição das nossas autoridades nacionais revela sensatez, colocando-se do lado da Ciência e reconhecendo que, estando salvaguardada a segurança, perante uma sólida avaliação do risco, há que apostar na competitividade e viabilidade da produção de alimentos, libertando recursos para o investimento na sustentabilidade.

Portugal e a Europa não podem perder esta batalha, sob pena de nos atrasarmos ainda mais na investigação e no conhecimento, e de empresas inovadoras e cientistas (o talento de que tanto precisamos) reforçarem a sua deslocalização para outras zonas do globo como, infelizmente, tem acontecido.

É tudo isto que está em causa neste momento.

Não vivemos tempos de racionalidade, mas cada vez mais é preciso fazer escolhas: a ciência e o conhecimento ou a ignorância e o “ruído”. Há um tempo para a discussão e outro para a decisão. Não podemos ficar reféns de ideologias, nem de fundamentalismos.

Pessoalmente, quero viver num País que tenha uma cadeia agroalimentar robusta, que lhe permita apostar no desenvolvimento sustentável das suas empresas, do território, do Mundo Rural, criando riqueza e mais-valia para a Sociedade.

O empobrecimento não é, não pode ser, uma atividade sustentável!

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA