Há pouco mais de 1 mês, os agricultores portugueses revoltaram-se de forma orgânica e descentralizada e cortaram várias estradas do país, nomeadamente fronteiras importantes.

Miguel Vieira Lopes – Área Internacional (Colaborador técnico na AGRO.GES)

Nessa altura a gota de água que fez transbordar a paciência dos agricultores prendeu-se com cortes nos pagamentos à agricultura biológica e ao modo de produção integrada que foram anunciados um dia antes da data de pagamento, para espanto geral. Entretanto, um conjunto de negociações e promessas, várias já quebradas, foram feitas pelo Ministério aos agricultores para evitar mais cortes de estradas no país.

No entanto hoje voltamos ao mesmo! No fim de fevereiro era suposto ter havido o pagamento de um apoio específico para as passagens permanentes, designado por Maneio da Pastagem Permanente. Este pagamento não foi feito em vários casos e, noutros casos, foi feito com cortes da ordem dos 18%, desta vez sem qualquer anúncio, mesmo que de véspera. Esta medida serve para apoiar os agricultores na correcta gestão das pastagens do ponto de vista da fertilização, e serve, no sentido mais lato, para garantir a manutenção destes sistemas que são tão importantes para o nosso país. São importantes porquê? Porque garantem um conjunto de serviços ao território que todos queremos que existam, mas poucos têm noção da razão porque existem. É um pouco como se os nossos governantes achassem que a comida vem do supermercado… Não, é exactamente assim! É que os nossos governantes não conhecem, de todo, a cadeia de valor que leva a comida até à sua mesa, todos os dias!!

Os sistemas de pastagens, para quem não conhece, não são só fontes de negócio para o agricultor, que nelas tem os seus animais a pastar, para depois os vender ou às suas crias. As pastagens são também o garante de que existe gente no território que, se não existisse a necessidade de uma presença diária que os animais ditam, estaria ao abandono e muito menos guardada de fogos, roubos e actividade criminal.

Alem do “haver gente”, há ainda o “haver gestão”. O agricultor retira rendimentos baixíssimos destes sistemas de pastagens mas, ainda assim, incorre em custos importantes para os manter. Um destes custos é o do controlo de matos, que é sempre pesado e seria, em muitos casos, motivo de abandono da propriedade, se não houvesse a “pressão” que os animais exercem sobre esse mato.

Tudo isto culmina no primeiro dos grandes motivos pelos quais a sociedade deveria estar interessada em manter estes sistemas de pastagem: o seu não abandono ao fogo que, no nosso clima, acaba por se tornar inevitável em áreas com muito material combustível. A propósito, olhando para os dados publicados pelas autoridades, e outros facilmente acessíveis, torna-se claro que “o Portugal” que não arde é o que tem pastagens e agricultura (ver Figuras 1 e 2).Mas há mais motivos para que as pastagens sejam entendidas como os sistemas frágeis e importantes que são. A ocupação do território com agentes económicos leva a que a desertificação e o abandono do território sejam combatidos. São exemplos destes agentes económicos os agricultores, os fornecedores de serviços associados à agricultura, a fileira da carne e a economia não agrária que se instala em espaço rural. A existência deles justifica a existência de escolas, lojas, restauração, turismo e, enfim, de uma sociedade funcional, onde mais pessoas querem viver.

Finalmente, as pastagens são importantes porque são o elo entre a agricultura e a floresta. São o que permite a existência dos sistemas agroflorestais que temos no nosso País e que nos caracterizam, e que são os redutos da conservação da biodiversidade e de outros serviços importantes para os ecossistemas. De notar que estes serviços dos ecossistemas incluem, entre outros, uma forte capacidade de retenção de carbono no solo, indispensável para os esforços de descarbonização da economia, e o aumento da retenção de água no solo, dois dos mais importantes contributos para a melhoria das condições ambientais que a agricultura pode ter.

O montado do Alentejo (apenas um exemplo) é um sistema artificial desenvolvido ao longo de séculos para garantir o aproveitamento máximo de áreas que são naturalmente pobres. Por isso, a utilização da terra sob o coberto do sobreiro ou da azinheira, para a produção de pastagens ou de cereais, representou uma das mais marcantes evoluções tecnológicas da agricultura mediterrânica de sempre. O porco marcou a forma como se podaram azinheiras durante dezenas e dezenas de anos. A cortiça justificou que se investisse na produção animal e na limpeza de matos. É tudo um sistema complexo que se une num importante elo da cadeia: a pastagem.

Mas parece que os nossos governantes não entendem esta importância, nem a fragilidade do sistema. Não entendem, que a pastagem, mesmo sendo um sistema de baixa rentabilidade, é fundamental para garantir um conjunto enorme de condições no seu território. Não entendem que o futuro de uma parte do País se joga na manutenção de condições de rentabilidade destes sistemas frágeis e complexos.
Parece que o Governo acha que o nome “pastagem permanente” quer dizer que elas estão lá para sempre. Mas não estão! Elas estão lá enquanto forem geridas! E é esse o racional para a referida medida do maneio da pastagem permanente, e de outras que surgiram no novo quadro comunitário de apoio. Esse racional, que escapa ao cidadão comum que anda na sua vida e não conhece esta realidade, não pode (não deveria sequer ser uma hipótese!) escapar também ao ministério da agricultura!Actualmente, existe um conjunto de questões acerca de burocracia relacionada com esta medida, que o ministério pode resolver facilmente e garantir um pouco mais de estabilidade na vida dos agricultores que dependem dela. Mas há duas outras questões que deixo em modo de conclusão, e que são fundamentais se queremos continuar a ter um País com gente e com um território com a capacidade de manter todos os serviços que uma grande parte da sociedade dá como adquiridos. Percebo que o actual ministério já deve ter um calendário, do tipo dos que vemos em filmes, em que os presos riscam um dia de cada vez na parede da cela da prisão à medida que se aproxima o momento da libertação, mas este recado não é para hoje, é para um futuro desejável para Portugal. São as seguintes as questões que deixo:

• A operacionalização do primeiro ano do PEPAC foi desastrosa. Os técnicos não tinham a necessária formação nem informação para responder aos requisitos das candidaturas. Percebemos que os valores que estavam anunciados eram indicativos e que isso quer dizer que, no ano que vem, o problema se mantém, apesar das soluções atabalhoadas que este Governo aplicou como cuidados paliativos (ainda não totalmente administrados) para 2023. O que vai o próximo Governo fazer para melhorar isto?

• A opinião pública começou a acordar com os protestos de agricultores que viram em Portugal e que têm visto por toda a Europa. Daqui resultou que houvesse um conjunto de recuos em regras ambientais ditadas pela UE que eram totalmente desconexas da realidade e impossíveis de praticar. No entanto, o cidadão comum ainda não percebe completamente que os apoios da PAC servem para garantir que a comida seja mais barata e mais segura na sua mesa e que o agricultor é remunerado para prestar um conjunto de serviços ambientais diversos. O que vai fazer o próximo Governo para dar a entender à população que estes sistemas frágeis, como são os das pastagens permanentes, são parte dessa estratégia de qualidade alimentar?

Autoria: Miguel Vieira Lopes
Área Internacional (Colaborador técnico na AGRO.GES)

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1 – Torres J, Gonçalves J, Pinto AT, Proença V, Honrado JP (2011). Fogo, resiliência e dinâmica em espaços florestais do Norte de Portugal. In Tereso JP, Honrado JP, Pinto AT, Rego FC (Eds.) Florestas do Norte de Portugal: História, Ecologia e Desafios de Gestão. InBio – Rede de Investigação em Biodiversidade e Biologia Evolutiva. Porto. ISBN: 978-989-97418-1-2. Pp 248-282
2https://smos.dgterritorio.gov.pt/coscid