A vitivinicultura desempenha um papel essencial na economia portuguesa, sendo um pilar fundamental da nossa identidade e tradição. Em 2024, a produção nacional de vinho deverá atingir os 6,9 milhões de hectolitros, posicionando Portugal como o quinto maior produtor da União Europeia.
No entanto, o cenário global não é tão favorável: a produção de vinho na União Europeia deverá registar uma queda de 4,8 milhões de hectolitros em relação a 2023, tornando 2024 o pior ano desde o início do século XXI. As Alterações Climáticas (AC), com os seus eventos extremos, são apontadas como a principal causa desta diminuição, segundo o relatório da OIV.
Como é amplamente reconhecido, os efeitos das AC têm-se intensificado nas últimas décadas. Entre os impactos mais evidentes estão o aumento da temperatura média global, a crescente frequência e intensidade de eventos climáticos extremos e, em algumas regiões, como a bacia mediterrânica, a redução da precipitação. Além disso, temos assistido a uma maior variabilidade climática entre os anos, o que torna ainda mais imprevisíveis os padrões meteorológicos e os seus efeitos nas diferentes geografias.
De acordo com Serviço Copernicus (C3S) para as AC, o ano de 2024 foi o ano mais quente alguma vez registado, superando a meta de 1,5ºC de aumento em relação aos níveis pré-industriais. Este aquecimento é mais acentuado nos continentes do que nos oceanos, com a Europa a ser o continente que registou o aumento mais rápido. Em 2023, a temperatura média na Europa já estava cerca de 2,3ºC acima dos níveis pré-industriais, com uma taxa média de aumento de 0,47 ± 0,09°C por década, entre 1979 e 2023 (Figura 1).Figura 1. Temperatura média na Europa, como aumento acima da média de 1850–1900, de acordo com seis conjuntos de dados diferentes. Fontes de dados: ERA5 (C3S/ECMWF), JRA-3Q (JMA), GISTEMPv4 (NASA), HadCRUT5 (Met Office Hadley Centre), NOAAGlobalTempv6 (NOAA) and Berkeley Earth. Credit: C3S/ECMWF. (Fonte: https://climate.copernicus.eu/climate-indicators/temperature)
O aumento da aridez e a maior intensidade de secas estão mais relacionados com o aumento da temperatura e da evapotranspiração do que com a redução da precipitação ocorrida
No caso da precipitação, não é possível indicar uma tendência significativa de longo prazo para a Península Ibérica, mas sim de períodos mais curtos, realçando a prevalência da variabilidade interdecadal e interanual [1]. Segundo os mesmos autores, o aumento da aridez e a maior intensidade de secas estão mais relacionados com o aumento da temperatura e da evapotranspiração do que com a redução da precipitação ocorrida. Contudo, as projeções indicam uma diminuição da precipitação, o que, em conjunto com o índice de magnitude da seca (SPEI6), aponta para um aumento considerável da intensidade das secas, especialmente em grande parte da Europa Central, e uma triplicação da magnitude das secas no Sul da Europa [2]. O agravamento das secas meteorológicas, combinado com o aumento da temperatura e da evapotranspiração, poderá ter consequências devastadoras para os sistemas agrícolas nas regiões mais afetadas pela escassez de precipitação.
A intensidade, frequência e severidade de eventos extremos também está a aumentar, representando uma ameaça crescente para a agricultura. Um exemplo claro disso é o aumento previsto no número de dias de ondas de calor em toda a Europa, com variações significativas conforme a latitude. Este fenómeno será mais pronunciado no Sul da Europa, onde o número de dias de ondas de calor poderá aumentar até trinta vezes em comparação com o período de 1971-2000, e onde os eventos compostos por calor intenso e seca serão particularmente prevalentes, agravando ainda mais os desafios para a agricultura [2].
Impactos para a viticultura
As AC, particularmente o aumento da temperatura e a intensificação das secas, têm vindo a provocar impactos significativos na viticultura e na enologia. Refletem-se tanto na fenologia das vinhas como na produção e qualidade dos vinhos. Tais impactos podem ser agravados por eventos meteorológicos extremos, como escaldões, que resultam em perdas de produção ou stress hídrico excessivo. Nos próximos pontos, serão descritos, de forma sucinta, os impactos das alterações climáticas na fenologia, ecofisiologia e qualidade dos vinhos, complementados com alguns resultados obtidos pelo Grupo Operacional (GO) WineClimAdapt. Este GO realizou um estudo inédito sobre um vasto conjunto de castas, que culminou com a criação de um ranking que identificou as castas brancas e tintas com maior capacidade de adaptação aos cenários das alterações climáticas.
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Na fenologia
Os impactos das AC na fenologia da videira são evidentes. O aumento das temperaturas e a alteração dos padrões de precipitação provocam a antecipação da fenologia, o encurtamento dos intervalos fenológicos e vindimas mais precoces, que tendem a ocorrer nos períodos mais quentes e secos, com consequências para a qualidade das uvas e prolongamento da estação de crescimento [3]. Estes impactos podem variar com a região e casta. Num estudo realizado em várias regiões vitivinícolas portuguesas e em 16 castas [4], projetaram para o período de 2040 a 2070, em comparação com o período de 1991 a 2011, avanços na fenologia. O modelo para a floração apresentou um avanço de 2 a 6 dias, enquanto o pintor foi o estado fenológico em que as alterações foram maiores, com um avanço de 6 a 14 dias. Já na região do Douro, Costa et al. [5] testaram vários modelos fenológicos para o abrolhamento, floração e pintor, em duas castas (Touriga Franca e Touriga Nacional), tendo previsto a antecipação dos tempos das fenofases em 6, 8 ou 10-12 dias até ao final do século para cada uma das fases, respetivamente. Projeções semelhantes têm sido estabelecidas por outros autores, como foi evidenciado num trabalho de revisão [6]. Importa, portanto, salientar a importância das projeções das fases fenológicas como ferramentas de apoio à decisão dos viticultores.
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Na ecofisiologia
2.1. Eficiência do uso da água
Os efeitos combinados do stress térmico e hídrico podem ser avaliados pela eficiência no uso da água (WUE – Water Use Efficiency), que reflete a resposta das videiras às condições climáticas adversas. A WUE correlaciona-se positivamente com a taxa fotossintética, condutância estomática e ácido abscísico, e negativamente com a transpiração. A WUE pode ser medida em diferentes escalas e através de diversas técnicas, tais como trocas gasosas e discriminação isotópica (δ13C).
A WUE depende dos fatores casta e porta-enxerto, tal como tem sido documentado em diversos estudos. Como tal, pode ser uma ferramenta útil para selecionar material genético mais adaptado aos cenários de AC. Em particular, no âmbito do GO WineClimAdapt, o δ13C foi usado, juntamente com a termografia, para classificar cerca de 190 castas (e alguns clones) e selecionar as variedades mais adaptadas a condições de stress hídrico. A partir desta análise, foram elaborados rankings de WUE instantânea, diária e no período de maturação, momento em que o stress hídrico é mais intenso. Como exemplo, a Figura 2 apresenta a dispersão dos valores de δ13C nas uvas de 189 castas (na modalidade sem rega) à maturação, representando a eficiência do controlo estomático e, consequentemente, da transpiração das videiras.Figura 2. Composição em δ13C, nos bagos à maturação, das castas em estudo, para a modalidade sem rega (Campo Ampelográfico da Herdade do Esporão)
2.2. Impactos de eventos climáticos extremos
As ondas de calor, especialmente quando associadas a níveis elevados de radiação, podem causar o escaldão das uvas e das folhas (Figura 3), resultando em consequências negativas tanto na produção quanto na qualidade das uvas. A intensidade desses fenómenos é determinada por uma interação complexa entre a temperatura, a radiação solar e as condições bioquímicas, fisiológicas e morfológicas das uvas. O seu impacto varia conforme o estado fenológico da videira, a casta utilizada e a sua adaptação às condições climáticas específicas [7].
Figura 3. Cachos afetados por escaldão
Para as castas em estudo no GO WineClimAdapt foi criado um ranking de tolerância ao escaldão, com base em resultados de dois Campos Ampelográficos: a Coleção Ampelográfica Nacional (Dois Portos) e o Campo Ampelográfico da Herdade do Esporão (Reguengos de Monsaraz). Os resultados deste ranking podem ser consultados em [8].
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Impactos para a produção e qualidade do vinho
Apesar dos efeitos das AC na produção poderem depender das características de uma determinada região, no geral têm sido observadas reduções na produção, que podem ser atribuídas ao aumento das condições para stress térmico com as consequentes limitações na fotossíntese, ao aumento da intensidade de stress hídrico, muitas vezes associado ao stress térmico, e a eventos meteorológicos extremos, como é o caso das vagas de calor que, pontualmente, podem causar quebras importantes na produção devido ao escaldão das uvas.
Os efeitos das AC ao nível da qualidade dos vinhos podem ser classificados como indiretos, resultantes dos seus efeitos sobre a fisiologia e fenologia da videira, ou diretos, resultantes principalmente dos efeitos da temperatura e stress hídrico na síntese e degradação de metabolitos primários (açúcares, ácidos orgânicos, aminoácidos, etc.) e secundários (compostos fenólicos e voláteis e seus precursores) através da regulação das suas vias biossintéticas. De uma forma geral, tem sido verificado um aumento do teor em açúcares e do pH, acompanhado por uma redução da acidez, particularmente em ácido málico, tendo como consequência uma diminuição do equilíbrio dos vinhos (Figura 4.). No entanto, importa salientar que estes efeitos podem depender das castas e até mesmo dos clones.
Figura 4. Cachos evidenciando desidratação devido a stresses abióticos com implicações na qualidade da uva
Ao nível dos metabolitos secundários também têm sido evidenciados efeitos de temperaturas elevadas e stress térmico, quer ao nível dos compostos fenólicos quer ao nível dos componentes do aroma. No caso das antocianinas, o stress térmico reprime os principais reguladores da sua biossíntese, e a sua degradação pode ser estimulada por temperaturas muito elevadas. Ao nível dos componentes do aroma, não tem sido possível identificar uma tendência tão clara, mas, aparentemente, verifica-se uma redução da concentração destes componentes com o aumento do stress térmico, bem como uma alteração do seu perfil, com aromas frescos e frutados a serem substituídos por notas maduras e sobremaduras.
Uma vez que estes efeitos variam com as castas, no GO WineClimAdapt vinificaram-se as castas brancas e tintas com maior capacidade de adaptação aos cenários das alterações climáticas. Os resultados evidenciaram um dos principais desafios enfrentados pelos produtores em climas quentes: o aumento do teor de açúcar nas uvas, que resulta em vinhos com elevado teor alcoólico. Em alguns casos, este fenómeno levou à produção de vinhos naturalmente doces, como foi observado nas castas tintas Caladoc e Alfrocheiro, e na casta branca Petit Manseng. Adicionalmente, alguns dos vinhos analisados destacaram-se pelos elevados níveis de acidez, uma característica particularmente interessante numa região de clima muito quente. Entre os tintos, as castas Vinhão, Petit Verdot e Sezão apresentaram este perfil, enquanto nos brancos destacaram-se as castas Petit Manseng, Chenin, Cercial, Bastardo Branco e Alvadurão.
Na análise sensorial os vinhos que obtiveram uma apreciação geral mais elevada foram elaborados a partir das castas tintas Vinhão, Merlot, Marselan e Alicante Bouschet e, nos brancos, os elaborados a partir das castas Fernão Pires, Cayetana, Riesling e Chenin.
Muitos destes resultados, bem como os resultados dos compostos de aroma, já foram publicados, encontrando-se outros ainda em fase de publicação, e poderão ser consultados para obtenção de informação mais detalhada [9, 10].
Medidas de adaptação
Face aos impactos descritos, bem como ao aumento da variabilidade anual e interanual das condições meteorológicas, é necessário promover medidas de adaptação que permitam salvaguardar o potencial produtivo deste setor. Para tal importa definir estratégias que passem pela utilização de medidas de curto, médio e longo prazo. Como exemplo de medidas de curto prazo salientamos a rega, prática já usada nas regiões onde os impactos das AC se fazem sentir com mais intensidade, mas também a gestão do coberto vegetal, a aplicação de refletores foliares e a aplicação de redes para proteção da radiação excessiva, ou a utilização de mulching e culturas de cobertura, visando reduzir a evaporação de água do solo e a sua temperatura à superfície (tendo, neste caso, sempre em conta a competição hídrica e nutricional). As práticas que contribuam para a saúde do solo devem igualmente ser consideradas, sobretudo as que promovem o aumento da matéria orgânica, do bioma, da taxa de infiltração e as que reduzem a erosão e o escorrimento superficial. A médio prazo podemos salientar a utilização de castas/clones/porta-enxertos mais adaptados a stresses abióticos, mais tolerantes ao escaldão e/ou com maturações mais tardias (para afastar o período de maturação das alturas mais quentes do ano). A alteração da orientação das linhas ou dos sistemas de condução podem ser também fatores a considerar de forma a minimizar a exposição dos cachos à radiação nos períodos mais quentes do dia. A longo prazo poderá ser necessário equacionar a relocação das vinhas para zonas mais altas ou mais próximas do litoral, onde as temperaturas sejam mais favoráveis. Será igualmente necessário promover o melhoramento genético, visando adquirir características que permitam suportar condições climáticas mais extremas.
Conclui-se que a adaptação do setor vitivinícola às AC requer uma abordagem holística que combine inovação, práticas de gestão sustentáveis e investigação.
Esta abordagem deverá promover as melhores soluções a curto, médio e longo prazo, permitindo desenvolver uma melhor e mais eficaz capacidade de resposta aos cenários previstos, e sendo compatível com a obtenção de vinhos de qualidade, essenciais para a sustentabilidade deste setor.
Referências
[1] Peña-Angulo D., Vicente-Serrano S.M., Domínguez-Castro F., Murphy C., Reig F., Tramblay Y., Trigo R.M., M Y Luna M.Y. Turco M., Noguera I., Aznárez-Balta M., García-Herrera R., Tomas-Burguera M., El Kenawya. 2020.. Environmental Research Letters. 15, 9, 94070. https://dx.doi.org/10.1088/1748-9326/ab9c4f
[2] Devot A., Royer L., Arvis B., Deryng D., Caron Giauffret E., Giraud L., Ayral V., Rouillard J. 2023. Research for AGRI Committee – The impact of extreme climate events on agriculture production in the EU, European Parliament, Policy Department for Structural and Cohesion Policies, Brussels
[3] Droulia F., Charalampopoulos I. 2022. Atmosphere, 13, 837. https://doi.org/10.3390/atmos13050837
[4] Fraga H, Santos JA, Moutinho-Pereira J, Carlos C., Silvestre J., Eiras-Dias J. Mota T., Malheiro A.C. 2016. The Journal of Agricultural Science. 2016;154(5):795-811. doi:10.1017/S0021859615000933
[5] Costa R., Fraga H.,Fonseca A., García de Cortázar-Atauri I., Val M.C., Carlos C., Reis S., Santos J.A. 2019. Agronomy, 9, 210. https://doi.org/10.3390/agronomy9040210
[6] Droulia F., Charalampopoulos I. 2021. Atmosphere, 12, 495. https://doi.org/10.3390/atmos12040495
[7] Gambetta J.M., Holzapfel B.P., Stoll M., Friedel M. 2021. Front. Plant Sci. 11:604691. https://doi: 10.3389/fpls.2020.604691
[8] Silvestre J., Damásio M., Egipto R., Cunha J., Brazão J., Eiras-Dias J., Flores R., Rodrigues A., Donno P., Böhm J., 2018. Enovitis, 54, 14-20
[9] Agostinelli F., Caldeira I., Ricardo-da-Silva J. M., Damásio M., Egipto R., Silvestre J. 2023. Plants, 12(10), 2063. https://doi.org/10.3390/plants12102063
[10] Roque R., Caldeira I., Anjos O., Lourenço S., Amaral J., Damásio M., Egipto R., Silvestre J. 2022. Volatile profile of 15 monovarietal white wines produced from grapes cultivated in a hot and dry regionof Portugal. 12. º Encontro Nacional de Cromatografia e XIV WARPA, 163-163.
Autores:(Da esquerda para a direita) José Silvestre1, Ilda Caldeira1, João de Deus1 e Miguel Damásio1
1 Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, I.P./CNCACSA
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