Sendo certo que a incerteza e a instabilidade deverão marcar o ano de 2024, tendo em conta uma série de acontecimentos de desfecho imprevisível – eleições, legislativas, em Portugal e na União Europeia, um novo Parlamento e uma outra Comissão Europeia, eleições presidenciais nos EUA, o desfecho das atuais guerras, na Ucrânia e no Médio Oriente,  e as tensões entre os principais blocos na geopolítica global – vale a pena olhar para as consequências dos dossiês que ficaram por fechar e os que transitarão da presidência espanhola para os “senhores que se seguem”: Bélgica e Hungria.

Em 23 de junho, refletíamos aqui sobre  “Os ventos da Suécia e o Trio que se segue”, numa antevisão do que poderíamos esperar nos 18 meses seguintes. Na altura, ainda não tinham ocorrido dois acontecimentos relevantes, com impacto nos mercados mundiais: o fim do acordo dos cereais no Mar Negro, relativamente expectável, tendo em conta as exigências da Rússia, e o conflito de Israel na Palestina, com os horrores a que temos assistido em Gaza, que retirou o foco e toda a atenção mediática da invasão russa na Ucrânia. Aparentemente, nos últimos dias, a situação parece ter-se invertido, com Israel a ter hipotecado boa parte da simpatia no Ocidente, e a Ucrânia a colher novamente o interesse da opinião pública e publicada, quer pelo debate em curso nos EUA e as divisões entre Democratas e Republicanos – que tenderá a ser mais um tema para uma campanha fortemente polarizada – quer pela discussão havida no Conselho da União Europeia e que abre oficialmente o alargamento da União à Ucrânia e à Moldova.

Ficou ainda por cumprir o pacote de ajudas à Ucrânia (e o Orçamento), devido à posição da Hungria, o que não é de somenos importância. Ver-se-á em janeiro, na Cimeira extraordinária, na liderança belga do Conselho.

A presidência espanhola não teria, nem podia ter, uma tarefa fácil, num quadro de instabilidade da política nacional em Espanha, no rescaldo das legislativas e com o ambiente fortemente bipolarizado a que assistimos. No entanto, esta radicalização, esquerda-direita, com mais ou menos extremismos, pode ser o espelho do que se poderá passar em Portugal e nas eleições europeias, com uma fadiga dos cidadãos nos partidos do centro o que, previsivelmente, vai originar uma fragmentação das representações nos diferentes Parlamentos, obrigando a coligações, difíceis consensos e ao crescimento do populismo, senão mesmo uma “navegação à vista”.

Relativamente aos dossiês de maior impacto para o agroalimentar, não tendo sido possível a assinatura do Mercosul que era um dos objetivos de Espanha e da Comissão Europeia, tivemos alguns avanços no plano europeu da proteína, na utilização sustentável de pesticidas, na Lei do Restauro da Natureza, nas regras do bem-estar animal (apenas no transporte), na Estratégia do Prado ao Prato e na sua articulação com os PEPAC e assistimos, também, ao inicio da discussão da Estratégia de Autonomia Aberta, de que já aqui falámos algumas vezes. A transição ecológica foi relativamente contida, à luz da sustentabilidade nos seus diferentes pilares, com os sistemas alimentares sustentáveis ou as energias renováveis a ganharem expressão, eventualmente nos próximos 12 meses.

Pela negativa, temos a continuada indefinição no dossier das cadeias livres de desflorestação que exigem respostas em 2024 sobre a implementação prática da legislação para 2025 – numa altura em que sabemos que em Portugal vai ser a APA a assegurar o controlo de todo o processo – e, contrariamente às expetativas, as Novas Técnicas Genómicas.

Pelo seu impacto e tendo em conta o resultado do último AGRISFISH, apesar da maioria dos Estados-membros apoiarem a proposta da Comissão (entre os quais Portugal, Espanha e França, o que se aplaude), não foi possível a obtenção de uma maioria qualificada. Bélgica, que vai ocupar a presidência da União já a partir de 1 de janeiro de 2024, absteve-se, e a Hungria, líder dos destinos da Europa no segundo semestre, votou contra, como já é habitual. A Alemanha também se absteve e a Polónia, um dos principais produtores pecuários e consumidor de soja, votou contra. A falta que fazes, Reino Unido!

Foi assim rejeitada uma inovação tecnológica que promove a sustentabilidade da agricultura europeia e a sua competitividade num mercado global, cada vez mais difícil e concorrencial. O mais preocupante é que temos cada vez menos ferramentas para conter doenças e pragas emergentes, de mitigação das alterações climáticas e um atraso no domínio científico e do conhecimento perante blocos importantes (e nossos principais fornecedores) como os EUA, Canadá, Brasil…em nome da demagogia, da hipocrisia, do populismo e da ignorância. Vale a pena reler o comunicado de imprensa do CIB sobre estas novas técnicas genómicas. Parar um pouco para pensar.

Não sabemos se vai ser possível, nos próximos dias, um eventual acordo fora do Conselho Agrícola, talvez “convencer” alguns Estados-membros como a Polónia ou a Alemanha a inverterem a posição. Caso tal não aconteça, será difícil alcançar um acordo na presidência belga e certamente impossível com a Hungria. Teríamos (teremos?) mais uns anos de atraso até ser possível a codecisão com o novo Parlamento Europeu, provavelmente em 2026 ou 2027. O mundo não vai esperar certamente por nós e os riscos de uma disrupção na cadeia de abastecimento têm de ser levados a sério.

O alargamento da União e uma reforma da PAC serão certamente temas em debate para 2024 e estas discussões já se iniciaram em Bruxelas com os representantes da sociedade civil e os Estados-membros. Aliás esta semana estivemos num workshop sobre resiliência, seguindo-se mais 4 outras discussões temáticas: segurança alimentar, sustentabilidade, solidariedade e áreas rurais, e governação, performance e simplificação. Outra nota de relevo é que para além da DG AGRI, a DG SANTE, DG CLIMA e DG ENVI participam nestas reuniões.

Mais ambiente, biodiversidade, ecologia, bens públicos, apoios à agricultura fora da PAC estão claramente em cima da mesa, quando falta mais reflexão sobre a Agricultura na sua função essencial de produção de alimentos ou o seu papel no comércio mundial, que muitos insistem (erradamente) em reduzir.

Não queremos produzir a qualquer custo, mas respeitando obviamente o ambiente e as boas práticas agrícolas, replicando os excelentes exemplos que temos um pouco por toda a Europa e desde logo em Portugal como demonstram os Prémios para a Agricultura. Mas, ao que parece, são muitos os querem travar o que de bom se tem vindo a fazer no Setor.

Neste contexto, as perspetivas não podem ser animadoras, numa altura em que os preços das matérias-primas continuam voláteis, menos que há um ano, com os custos ainda elevados. A inflação tenderá a continuar altista, tal como os juros e os custos da mão-de-obra, penalizando empresas e consumidores, com menos poder de compra.

No nosso país, temos assistido a uma tendência de redução nos preços dos produtos de origem animal, com custos ainda elevados e produtores cada vez mais desesperados, sobretudo na produção de leite ou de carne. O abandono ou a redução de efetivos parece ser a saída possível (única?), mas há que inverter essa tendência, sob pena da Indústria agroalimentar não ter capacidade de abastecimento, aumentando a nossa dependência.

No caso concreto dos alimentos compostos para animais, no quadro da União Europeia, o setor perdeu cerca de 7 milhões de toneladas em dois anos. Muito dificilmente irá recuperá-las, uma vez que lida com a perda de mercados externos, ataques sucessivos à atividade pecuária, redução do consumo de produtos de origem animal, zoonoses, como a gripe aviaria ou a peste suína africana, restrições ao nível do bem-estar animal, maiores exigências legislativas, designadamente na redução das emissões e, neste particular, com ainda mais incidência na redução de metano. Tudo isto tem conduzido a uma diminuição na procura. Na Holanda, por exemplo, ainda recentemente foram aprovados no âmbito do PRR, 1,5 biliões de € para compensar os produtores pelo encerramento das suas explorações.

Temos de ponderar se é esta a estratégia que queremos seguir.

O ano de 2024 que nos traz duas eleições muito relevantes, deve representar uma oportunidade de diálogo com os decisores políticos sobre a importância do setor agroalimentar, da alimentação e do Mundo Rural na coesão social e no desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento, para ser verdadeiramente sustentável, quer-se inclusivo, sem deixar ninguém para trás e privilegiando a renovação geracional, sucessivamente adiada, no tecido empresarial ou na Administração Pública.

Com tantos desafios e riscos inerentes à política que está a ser seguida em Bruxelas, não raras vezes legislando para um mundo virtual, quiçá idílico, os decisores tenderão a apostar nesta linha de continuidade, em pequenos passos e negociações, cada vez mais complexas e delicadas. O Setor tem de estar presente nessa consulta.

Mas as eleições europeias, sobretudo se passarmos ao lado do debate sobre o futuro da União Europeia, num quadro de alargamento em que são obrigatórias reformas nas instituições, nas políticas públicas, nos processos de decisão e uma relação mais direta entre eleitores e eleitos, poderão configurar um cenário de rutura. E isso não podemos permitir. Devemos respeitar as diferenças entre os Estados-membros, reconhecer os pontos de partida, as velocidades de transição, as suas especificidades e diversidade. É essa a riqueza da Europa.

Recusar o discurso do que é “fofinho”, ou a tendência para cavalgar na onda, que tem sido a marca indelével de um passado recente, em que emergem apenas as preocupações com as sondagens e o ruído.

Porque nada está garantido, ainda estamos a tempo de arrepiar caminho.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA