Por estes dias, dei comigo a pensar nas analogias da situação económica e social que vivemos em Portugal, e na União Europeia, com a saga de “Tudo em todo o lado ao mesmo tempo”, grande vencedor dos Óscares de 2023, designadamente de Melhor Filme.  Para quem não viu, trata-se de falência (uma lavandaria), raiva, angústia e frustração de uma imigrante chinesa nos EUA que, pretendendo sair da situação em que encontra, tem a missão de salvar o mundo, atravessando via metaverso vários universos paralelos, explorando as vidas que não chegou a viver. Assumidas as devidas distâncias, todos os ingredientes “estão lá”, o cansaço e o desencanto, as narrativas, o direito ao sonho de uma profissão digna e valorizada, e o desejo que o mundo real se pudesse desdobrar em realidades alternativas. Depois, parece que, de repente, a sociedade se está a degradar, são os professores, as forças de segurança, a saúde, a habitação (vem-me à memória a canção do Sérgio Godinho), a paz e o pão, as redes sociais a inflamar, sinais preocupantes e amplificados, pelo menos em Portugal, com as crises políticas no Continente, Madeira e Açores, em campanha ou pré-campanha eleitoral, onde tudo se promete, não raras vezes sem cuidar de saber se é possível cumprir.

Jaime Piçarra – Secretário-Geral da IACA

A perceção é que se não governa para dar resposta aos problemas. Como vai ser a partir de 10 de março, com tantas promessas?

Em Bruxelas, soam os alarmes, com a perspetiva de 25% do Parlamento Europeu ser constituído por extremistas e radicais, de direita ou de esquerda, a ameaçar por dentro e pagos com os nossos impostos, a coesão do projeto europeu. É a fragilidade da democracia, mas a verdade é que ninguém estará isento de culpas e, afinal, a legitimidade democrática não pode ser posta em causa. Foi o povo que falou (veremos quantos serão os votantes…) Quem vai querer saber da abstenção? Provavelmente, apenas os comentadores de serviço. Os sociólogos e estudiosos académicos, especializados, irão comentar com mais propriedade os sintomas, as causas e teorizar sobre a Sociedade que estamos a construir, quiçá no que respeita ao setor agrícola e a tudo o que temos vindo a assistir um pouco por toda a Europa, com destaque para França, Bruxelas, Espanha e Portugal. Acerca de todas estas manifestações a análise é, infelizmente e em nossa opinião, muito simples: a desqualificação do setor agrícola, do agroalimentar e do mundo rural. E tudo isto é mais difícil de digerir porque na altura da pandemia o Setor foi largamente reconhecido pelos decisores políticos, pela sua resiliência e nobreza. Aliás, reconhecimento que se estendeu a toda a cadeia alimentar.

Afinal, os políticos governam baseados (inspirados?) nas respetivas opiniões públicas.

Em França, quando o Presidente Macron foi eleito, uma das primeiras medidas foi a criação, em 2018, dos Estados Gerais da Alimentação, uma reflexão profunda sobre a agricultura e a alimentação, envolvendo todos os atores, a sociedade civil. O que resultou? Uma estratégia e aposta na ecologia, na transição ecológica, foi até criado um Ministério para a Transição Ecológica, para satisfazer a população urbana, com titulares das pastas da agricultura politicamente débeis, tal como, nos anos mais recentes, os Comissários destas pastas em Bruxelas.

Foi esta a lógica da reforma da PAC pós-2020, a que estivemos ligados desde o início, com a promessa de maior simplificação, definição de objetivos, a denominada subsidiariedade, dando autonomia aos Estados-membros, mas com uma banda estreita de orientações de Bruxelas. Mais ambiente, menos produção de alimentos. O Green Deal e o Pacto Ecológico Europeu ganharam tração com as metas bem conhecidas, a proposta da Comissão a ser apresentada em plena pandemia, maio de 2020. Ainda nos lembramos?

Após a sua aprovação, foram realizados vários estudos de impacto, desde o do USDA a análises independentes que concluíram os riscos de tal política para a União Europeia: reduções de produção, aumentos de custos, alta de preços para os consumidores, dependência dos países terceiros até em setores onde hoje somos exportadores líquidos. A Comissão recusou sempre um estudo de impacto global das medidas e mesmo no Conselho, onde estão os Estados-membros, os decisores nacionais, não foi possível convencer ou travar o ímpeto ecológico. A Europa seria o exemplo das regras ambientalistas para o mundo, regras essas muito mais restritivas que as dos concorrentes no mercado mundial. A resiliência tudo aguentaria, pensavam eles!

Mas não foi só o Pacto Ecológico Europeu. Muito mais se seguiu, a maior parte sem a liderança da DG AGRI. A nova PAC com a arquitetura verde e os ecoregimes, a utilização sustentável de pesticidas, as novas técnicas genómicas, o restauro da natureza, a desflorestação, o bem-estar animal, muita coisa passou ao lado da agricultura, sendo a discussão de muitos destes temas liderada pela DG SANTE, DG ENVI ou pela DG CLIMA …um “garrote” legislativo que nos ofusca, retira competitividade, premeia a concorrência desleal e empobrece a Europa. O garrote é particularmente apertado, pois além de tudo o resto lidamos com a guerra na Ucrânia, os conflitos internacionais e com os seus impactos, que nos evidenciam as fragilidades da União Europeia. E atenção: deixar ao cuidado dos Estados-membros determinadas regras, como ficou patente em França, também ameaça a estabilidade do Mercado Único.

Foi tudo isto, a juntar às questões específicas do nosso país – as ajudas tardias, os erros reconhecidos na implementação da PAC, os custos em alta, a seca, a instabilidade, e um contexto também ele cheio de burocracia- que espoletou o sentimento de revolta também em Portugal. É possível governar contra o Setor?

O Governo terá ido agora ao encontro das reivindicações dos agricultores, com mais ajudas, linhas de crédito, pese embora não tenha convencido todos…mas “o problema de fundo está lá”, na União Europeia, com os Estados-membros a terem de assumir a sua responsabilidade. França prometeu levar as questões ao Conselho Europeu, a Presidente da Comissão vai apresentar propostas de flexibilização, de mais simplificação e menos exigências, já para este semestre, durante a presidência da Bélgica e em plena campanha para o Parlamento Europeu. Para a Ucrânia, e bem, foi desbloqueada uma verba de 50 mil milhões de euros.

Para já, e numa altura em que discutimos em Bruxelas e em diferentes fóruns, o Futuro da Agricultura da União Europeia, no quadro do Diálogo Estratégico, é altura de dizer que as “smart villages” ou outros jarrões, não se adaptam, por ora, à realidade, e não resolvem os problemas. Há um mundo que só existe na cabeça de alguns decisores, o tal da realidade alternativa, baseada em metaverso, de que falámos. Uma realidade alternativa pode ser possível, mas, no mundo em que vivemos ela tem de ser construída. É verdade que a tal sociedade civil, onde rareiam os que defendem os agricultores e a alimentação, sobretudo nos Parlamentos nacionais e no Parlamento Europeu, irão falar nos “atrasos civilizacionais”, nas causas ambientais e animalistas. Também tenderão a manifestar-se, mas aí competirá aos políticos dos Estados-membros, e sobretudo de Portugal, decidirem em que lado da história se pretendem posicionar. Muito mais do que apoios e subsídios, que são importantes, é isto que está em causa, sob o olhar atento e o escrutínio dos agricultores, mas também da opinião pública. Talvez por estes dias se tenha percebido que sem agricultores e sem agropecuária, atividades que arrastam, a montante a jusante, inúmeras atividades, é a soberania e a alimentação que estão em causa.

Muitos de nós, centenas de nós, nas reuniões com a Comissão Europeia, no Parlamento Europeu, nas nossas organizações, nacionais e europeias, falámos e questionámos tudo isto. Em vários fóruns e em reflexões, no espaço público, vínhamos a alertar para todas as consequências previsíveis das medidas que têm vindo a ser implementadas. Se os decisores (finalmente) acordaram, então poderá ter valido a pena.

Gostaríamos de ver estes temas a serem discutidos, com transparência, na campanha eleitoral. Qual a política para a Agricultura e Alimentação, para o Agroalimentar. Vai ser possível reverter algumas das medidas já implementadas? Qual a configuração do Ministério?

Em Portugal ou na União Europeia, o debate não tem de ser ambiente por oposição à agricultura, mas deve ser sobre como compatibilizar ambiente com agricultura.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA