Numa altura em que as guerras na Ucrânia e no Médio-Oriente parecem entrar numa escalada sem fim à vista, aumentando ainda mais a incerteza em que vivemos, e em que o espaço informativo é ocupado por uma crescente desinformação, somos convidados a decidir o futuro da Europa através das próximas eleições, a 9 de junho. Para tomarmos decisões informadas vale a pena recordar uma sondagem recente do Eurobarómetro, que, provavelmente, não mereceu a atenção que devia.

Jaime Piçarra – Secretário-Geral da IACA

Em Portugal, pelo menos, estávamos claramente distraídos com a espuma da governação e os “casos e casinhos” que muitos já querem colar ao novo Governo. Como aqui escrevemos nas últimas Notas, o Governo não teria estado de graça, nem margem para o erro, muito menos a poucos dias da escolha dos deputados para o Parlamento Europeu. Terá, no entanto, de ir fazendo o seu caminho, comunicando, mas, sobretudo, mostrando, que está no rumo certo.

A tal sondagem, que devemos reter, divulgada no rescaldo da contestação dos agricultores um pouco por toda a Europa, mostra que os eleitores europeus estão descontentes com a política agrícola da União Europeia porque esta não assegura a independência alimentar,  apesar da sua relevância no orçamento comunitário. O facto é que quase metade dos inquiridos considera que as iniciativas de Bruxelas têm tido um impacto negativo na proteção da agricultura europeia e na independência deste bloco em termos da sua alimentação. O descontentamento é ainda maior em países como França, Espanha, Polónia ou Itália, importantes produtores agrícolas europeus.

O facto é que os decisores europeus não têm alcançado uma opinião pública favorável mesmo tendo em conta os subsídios (aparentemente) pagos aos agricultores. Muito provavelmente, depois de dois anos de pandemia e de mais dois de invasão da Ucrânia, com todas as consequências que se conhecem, as pressões para uma maior ambição ambiental desembocam num impacto fortemente negativo para a competitividade da agricultura europeia. Perante este contexto os decisores europeus têm feito muito pouco. As medidas já tomadas e outras preconizadas são claramente insuficientes para travar a concorrência desleal com outros blocos, uma vez que as exigências para produtos europeus não têm paralelo em outros produtos congéneres provenientes de países terceiros.

O que sobra em ideologia e fundamentalismos, falta em coerência e bom-senso? É a questão que se impõe.

Veja-se, aliás, a dinâmica e a agenda de “rolo compressor” nos tempos em que o Vice-Presidente Frans Timmermans condicionava as políticas europeias e os impactos da hegemonia das preocupações ambientais na economia agroalimentar.  Como sempre aqui afirmámos, não podemos negar as questões do ambiente e das alterações climáticas, mas temos a obrigação de as compatibilizar, com inteligência, e auscultando os interessados, entre Agricultura e Ambiente.

É verdade que qualquer um de nós irá até onde nos deixam ir ou até onde a nossa consciência nos permite. Neste caso, o então Comissário Timmermans, não raras vezes arrogante e imune às críticas, se catapultou através dos temas do ambiente sem que ninguém o confrontasse, pelo menos no Colégio de Comissários, e se a Presidente da Comissão e os seus colegas Comissários se mantêm ao longo de toda esta legislatura – com maior ou menor peso político – surge-nos uma outra questão: quantas Comissões existem numa Comissão Europeia?  

Os decisores têm de saber antecipar as consequências das suas políticas, medir os impactos, avaliar, ouvir a sociedade civil, os agricultores, os Estados-membros, recuar quando é preciso e necessário e não porque o ruído ou a “voz das ruas” é absolutamente ensurdecedora.

Porque se existem riscos de um avanço dos extremismos e de um cenário tripartido em Bruxelas no pós-eleições para o Parlamento Europeu, um pouco à semelhança do que acontece em Portugal e por toda a Europa, é conveniente que a Comissão Europeia – sempre apontada com a tradicional falta de legitimidade de quem não é eleita – não descarte a opinião e posições dos Estados-membros, de quem tanto precisa, dado que o Conselho é, e sempre será, um pilar essencial do reforço da construção europeia, sobretudo numa altura em que o futuro alargamento vai exigir ambiciosas reformas.

Vem tudo isto a propósito de dois dossiês que nos preocupam seriamente e para os quais, se não existir uma visão realista de adaptação da legislação à realidade dos países, corremos sérios riscos de disrupções e crises de (in)segurança alimentar.

No dossiê da Desflorestação (EURD), 21 Estados-membros, entre os quais Portugal, pediram a revisão ou o adiamento da sua entrada em vigor, alegando a impossibilidade de aplicação em tempo útil. Apenas precisamos de mais tempo, de auscultar os países exportadores, as empresas, mais meios, queremos evitar a desflorestação, mas temos de conhecer as regras, com clareza e transparência. Trazer também a simplificação para esta legislação. Neste momento, não existem contratos de soja para 2025 e os preços de cacau e café situam-se em níveis históricos, com uma tendência altista. Abordado sobre esta questão, o Comissário Agrícola defendeu-se, referindo que o dossiê não é da sua competência, vai ouvir o Ambiente e a DG ENVI que, aparentemente, estará irredutível.

No tema das Novas Técnicas Genómicas, a maior parte dos Estados-membros também se manifestou, desta vez favorável à proposta da Comissão, mas aqui não houve maioria qualificada. Países como a Hungria ou a Polónia bloquearam a decisão, o que compromete o trílogo.  A Presidência belga continua as negociações para que seja possível uma decisão até final do seu mandato, a 30 de junho. Seguem-se as presidências de Hungria, e em 2025, Polónia e Dinamarca, ou seja, se o Parlamento Europeu não avançar na discussão no Plenário de 24 de abril, o tema ficará adiado para o futuro Parlamento. Entretanto, será que os países exportadores estarão dispostos a esperar por mais estes recuos da União Europeia? Ainda por cima numa legislação que a própria Comissão considera como uma ferramenta importante para a sustentabilidade da Agricultura? Ou vamos limitar e comprometer as importações de matérias-primas e a capacidade de abastecimento, neste cenário de cada vez maior imprevisibilidade e instabilidade?

O setor tem mostrado uma enorme capacidade de resiliência, mas se queremos, enquanto europeus, continuar a sê-lo, a estratégia deve ser a de reduzir a nossa dependência. Para o bem e para o mal, a noção de que somos dependentes já está a ser interiorizada, mais do que percecionada, pela opinião pública, leia-se, eleitores.

Estes dois dossiês – Desflorestação e Novas Técnicas Genómicas – estão intimamente ligados à proteína. Aliás, este foi o foco do Conselho informal de Agricultura que decorreu em Genk e sabemos que, tal como nós, o Estado Português defende o reforço da autonomia agroalimentar, uma abordagem holística e integrada, a interligação da PAC com outros fundos, mais e melhor investigação, fluxos de importação seguros e de qualidade e mais produção para reduzir a dependência. Aumentar a resiliência.

Aqui chegados, a questão que engloba todas as anteriores é a seguinte: é possível centrar o debate na Alimentação e segurança alimentar como estratégicas, se continuarmos a ter várias Comissões na mesma Comissão Europeia, sem uma visão integrada de toda a economia e sociedade e a sua necessária coesão?

Na certeza de que, sem ouvir os Estados-membros (e os cidadãos), o caminho da implosão é um cenário que não deve ser descartado, pelo que temos de evitar essa premissa a todo o custo.

Pode parecer exagero, mas não deixa de ser verdade que esta é também a questão que se joga nas eleições de 9 de junho para o Parlamento Europeu.

Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA